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Sweet/Vicious: quando uma série da MTV vai até onde nem Game of Thrones chega

11.1.17Dana Martins


Por acaso, ano passado eu li e conversei bastante sobre violência na televisão - sabe, essas mortes que deixam todo mundo louco em Game of Thrones e The Walking Dead. E junto com essas mortes, vem a violência gráfica, indo cada vez mais longe, em uma competição pra ser o ousadão que vai até lá e não tem medo de mostrar a realidade. Essa é uma onda que tá atingindo as séries, os filmes, todo mundo que quer provar que pode matar os protagonistas, que morte acontece. Isso também vem junto com uma onda de histórias mais "maduras", tipo as séries de super-heróis da Netflix e até o filme Deadpool que "chocou" com a censura de 18 anos. É, vamos mostrar a realidade. 

Então chega Sweet/Vicious.

Eu conheci a série por comentários aleatórios nas redes sociais e o que eu sabia era: Sweet/Vicious tem alguém de cabelo verde e era mais ou menos sobre "garotas que decidem revidar casos de abuso sexual no campus com as próprias mãos". Até aí tudo bem. Uma série da MTV, eu imaginei comédia, produçãozinha qualquer e muito provavelmente ruim, mas fui assistir mesmo assim porque não tinha nada melhor.

E aí... as coisas mudam logo de cara. Eu não vou dar spoiler detalhado, mas no meio dessa brincadeira de "Vingadores" alguém morre. Antes disso, eu imaginava que seria aquela coisa mais comédiazinha de "eu te dou umas chineladas e continuo sendo um herói bonzinho". Só que não, é porrada pra deixar marca. 

Tipo, pra os padrões de The Walking Dead e Deadpool, Sweet/Vicious sou eu brigando com o meu irmão, mas ainda tinha algo estranho.

Pareceu violento. Violento demais. E aí a série continua, a personagem continua sendo vigilante e agredindo pessoas em becos escuros, quebrando braços e deixando feridas, etc. Tudo aquilo que você vê em Demolidor.

Mas aí eu ia ficando incomodada. Eu não sabia se era demais. O que isso significava. 

Será que esse é mesmo o jeito de lidar com a situação? Não tô esperando mulher no mundo real vestindo um capuz e indo atrás de estuprador (quer dizer), ainda mais fazendo isso sem ter consequências, mas ainda... Parecia demais.

Então eu parei pra pensar sobre isso e... eu acho que o problema sou eu.

Eu já vi coisas muito, muito violentas, mas não me questionei quanto a validade da violência nelas dessa forma. Qualquer uma das outras séries citadas são mais violentas que Sweet/Vicious.

Aí eu fiquei me perguntando a razão disso.

É por que a gente aprende perdoar homem com cara de bonzinho muito mais rápido?

É por que a gente não tá acostumado a ver mulher lutando contra homem? 

É por que nós fomos criadas, como mulheres, para não reagir a homem violento?

É por que nós fomos criadas a não ver mulher como o ser violento que ela pode ser? 

É por que a gente aprende a vilanizar a mulher primeiro numa questão mulher vs. homem?

É por que a gente aprende que estupro não é realmente um crime?

Quer dizer, a gente sabe que estupro é um crime. Mas entender é diferente.

Eu cresci imaginando estupro de uma forma diferente. Tipo aquele episódio de Arrow que apresenta a Sara Lance (Canário), onde ela está lutando contra um vilão que abusa de mulheres - ele as captura e faz um processo louco lá pra transformá-las em bonecas, algo assim. Enfim, a visão que eu aprendi de estupro é que é feito por esse homem mal vilão que vive em lugares escuros e o estupro é algo bizarro - olha só, tem até um nome especial. Estupro.

Não via como o que o namorado da sua amiga faz quando uma noite te segura no sofá e faz sexo com você. Não que é aquela vez no encontro com o garoto bonitinho da sua sala que te forçou a fazer isso mesmo quando você falou que não queria. Não é o seu namorado, que simplesmente não respeitou os seus limites quando você não queria muito. Não é quando você se sentiu obrigada a fazer sexo porque não sentiu que podia dizer não.

Mas é.

É estupro. É abuso sexual.

Isso deixa marcas, isso diz pra pessoa que ela não tem o controle do próprio corpo, porque é isso que acontece quando alguém passa acima da vontade de outra pessoa e usa o corpo dela como quiser. Isso é estupro. 

E faz um tempo que eu tenho aprendido sobre isso, sobre consentimento e sobre o impacto que isso tem nas mulheres. Tem uma cena em Sweet/Vicious que me fez ficar pensando, todo mundo fala "se beber, não dirija, chame um táxi", só que se você é mulher, é "se beber, pelo amor de deus esteja junto de outra mulher que vai te proteger e te levar pra casa". A opção de chamar um carro e ir embora é um risco. E SE ACONTECER ALGO COM A MULHER VÃO DIZER QUE A CULPA É DELA!!!

E eu não bebo, então isso é algo que eu nem me relaciono pessoalmente. Mas eu vejo com a chegada do Uber no Brasil todo mundo falando "yey, uma nova opção agora de trabalho, vou pegar um carro e fazer" - e toda vez que eu penso em eu fazer isso, que seria até uma possibilidade real, eu penso no risco de estar sozinha com um homem desconhecido num carro e ele fazer alguma coisa. 

Essa semana eu vi rolando na internet a foto de um restaurante que no banheiro feminino colocou essa placa:

"Você está num encontro que não tá dando certo?"
E aí ensina como pedir uma bebida que na verdade é um código pra pedir ajuda pra dar o fora discretamente


É absurdo que a gente viva com tanto medo de homem - mas é uma realidade. 

Uma em cada 5 mulheres na faculdade vão ser abusadas sexualmente esse ano a não ser que algo mude.


Esse são os dados dos EUA.

Mas ainda assim, quando uma mulher tenta relatar um caso de abuso, seja agressão ou abuso sexual, ela não é levada a sério (dados que eu recolhi depois do caso da Amber Heard) (a maioria dessas questões Sweet/Vicious desenvolve).

Ah, um ator que tem várias acusações de abuso sexual acabou de ganhar um Globo de Ouro. Pera, o presidente dos Estados Unidos... é.

E eu acho que o que mais pegou pra mim em Sweet/Vicious foi perceber o quanto eu não entendia estupro como um ato de violência, um crime, algo que o agressor deva ser devidamente punido. Eu via as garotas sofrerem com os efeitos do estupro na série, mas meu cérebro ainda questionava a validade. E, algo que eu nunca quero deixar de questionar, é o uso de violência em qualquer situação.

Mas aí a gente faz uma pausa e compara com a minha reação assistindo qualquer uma das outras séries/filmes citados.

Cérebros explodindo, corpos sendo esmagados, tortura, genocídio, tiroteio. 

A gente quer que vilões sejam punidos por muito menos. A gente assiste o Oliver Queen (Arrow) dando flechada em gente só porque o pai escreveu o nome num caderninho. Às vezes os heróis enfiam a porrada só pra pegar uma informação ou entrar num lugar.

Por que agora seria diferente?

Não é. 

Enfim, acho que a resposta tá em algum lugar entre "a gente aprende a perdoar homem muito mais rápido" e "não vê estupro realmente como uma violência que exija punição".

Mas também tem um detalhe sobre Sweet/Vicious: é uma série mais realista. Digo realista no sentido de "parecido com a nossa realidade" e não "justificativa pra mostrar violência gratuita."

Você tem filmes/séries tipo Kick-Ass, Deadpool ou Jessica Jones, onde você tem uma ambientação mais "realista" da história do super-herói, mas Sweet Vicious soa como uma série que se passa em uma faculdade qualquer, no nosso mundo. Os caras apanhando não são bandidinhos fazendo atividades ilegais no cais de madrugada (não é assim que o Demolidor lida com tráfico de mulheres/pessoas? não lembro bem), são homens jovens do próprio campus das garotas. Eles têm as caras dos garotos que andam pela minha faculdade. Eles têm as caras dos mocinhos dos filmes de Hollywood. 

No filme ele sequestra ela pra viver pelo resto da vida junto com ele sem dar qualquer opção e sem consentimento
e isso é vendido como romance


Em alguns casos na história de Sweet Vicious, são até personagens conhecidos que estão ao redor da vida das garotas.

A série é tipo como se a história fosse Arrow. Os dois tem exatamente a mesma descrição - o vigilante mascarado que aparece de noite para punir pessoas que fizeram coisas ruins pra cidade e ainda tem ajuda de uma hacker. Só que enquanto Arrow parece um herói imaginário de filme, Sweet/Vicious parece algo que a minha amiga da faculdade faz nas horas vagas. E isso torna tudo muito mais... bem, real. 

E estar tão perto da realidade incomodou, acho que nem por ser realmente violento demais. Mas porque faz a gente questionar as coisas na própria vida, porque diferente de uma invasão de alienígenas ou Ultron, esse tal vilão que não sabe o que significa consentimento e pode colocar a mim e as mulheres ao meu redor em perigo está em todo canto. Pergunte as pessoas ao seu redor o que é consentimento e se prepare para a resposta.

Mas eu percebi também outra coisa e é por isso que eu tô escrevendo esse texto. Eu percebi que o meu incômodo foi uma preocupação em antemão por imaginar gente falando que a série é "ódio contra homem". Eu não sei nem se eu realmente achava a violência demais, ou eu me sentia assim porque as outras pessoas poderiam pensar que é violência demais e reclamar da série por isso, mesmo quando tem fatos provando que não é. 

Só pra deixar claro: Sweet/Vicious não é violento como essas séries, não faz mais do que qualquer historiazinha de super-herói, definitivamente não é mais violento que Game of Thrones. Não chega nem perto.

Mas ao mesmo tempo, Sweet/Vicious me levou a uma parte da realidade e um uma abordagem da violência que dificilmente é mostrada. É tipo aquela discussão de... cadê os super-heróis questionando a brutalidade da polícia contra as pessoas negras? Onde tá essa realidade? Por que as histórias estão sempre "querendo ir lá", mas quando envolve minorias elas nunca vão? Sempre tem uma desculpa pra não ir? Sempre soa "demais"? E Sweet/Vicious vai mesmo assim. É a história de super-heróis vigilantes da nossa época. E eu sou grata por isso.

*Sweet/Vicious ainda tá passando, eu só assisti até o episódio 6 e não sei se até o final vai ser boa, mas até agora é. 

*Nesse texto quando eu falo da sensação da violência parecer demais é a violência usada pelas personagens no trabalho como vigilante (tipo o Demolidor usa) (e não é demais), basicamente porque a gente não aprende a considerar violência que envolve abuso sexual como realmente violência.

*Uma coisa que eu li e faz sentido, Sweet/Vicious pode ser uma série muito mais pesada do que Supergirl por exemplo porque abuso sexual é um assunto pesado. Mas quando eu falo de pesado aqui não to falando do tema nem das cenas de estupro contidas na série, porque é pesado.

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2 comentários

  1. EU GOSTO TANTO DA AISHA DEE (a Kennedy em S/V, pelo o que o Google me disse).

    Não tenho muito o que comentar, mas esse texto me lembrou de uma vez que eu tava ouvindo 2 homens conversando com uma mulher, acho que eram colegas de trabalho e eles estavam convidando ela para um fim de semana com o pessoal da empresa, com muita bebida e tal. Daí ela disse "Até parece que eu sou doida de ficar bêbada perto de vcs", e eles "Que isso, a gente não faz isso não", e ela "Ah, até parece, eu que tenho que cuidar de mim hahahah". Tava todo mundo rindo, mas fiquei BESTA que essa questão existe quando se é mulher. Eu nem bebo também, mas NUNCA que ia ligar ficar bêbado a risco de estupro. E eles eram meio que amigos, o que não mudava o fato dela ser uma mulher no meio de um monte de homem. Que mundo puxado. O tanto de abuso que ela já deve ter tomado conhecimento ou sofrido...

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    1. tipo, eu acho que vai de cada um ver os próprios limites. tem que tomar cuidado também porque isso se torna uma forma de controlar a mulher. MAS se ela vai lá e faz, o pessoal dpeois COM CERTEZA coloca a culpa nela "como é que tu foi e bebeu? tava querendo". eu não sei como é pras outras pessoas, mas tem muito medo aí normalizado que a gente nem se dá conta

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