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Amiga, algum dia você vai ser puta

7.2.16Isabelle Fernandes

Um cartaz de protesto onde está escrito "Minha liberdade agride você?"

Sim, eu sei. Esse título pode estar parecendo muito estranho e talvez ofensivo, mas tem todo um porquê na história por trás dele. O texto é pra nós mulheres, mas os moçoilos e pessoas de outros gêneros podem ler à vontade, desde que tenham a mente, o coração e os ouvidos (ou olhos?) abertos para tal. 

Vamos lá.

Tudo começou com uma amiga minha. Nós fazemos parte de um grupo que por muito tempo foi um dos subgrupos de um fã-clube gigantesco, mas que agora tá mais pra coletivo feminino. É lá que compartilhamos as dificuldades encontradas em todos os âmbitos da nossa vida e também falamos muito sobre sexualidade e homens/mulheres gostosos. Enfim, é um espaço pra falar sem medo, sem julgamentos, então sempre surgem questões que, em sua maioria, só existem porque vivemos numa sociedade ridiculamente patriarcal.

E eis que vem essa amiga falando sobre ser puta. De acordo com ela, não importa o quanto a gente se esforce pra agradar a todos, pra tocar a nossas vidas de acordo com o que a sociedade diz que é certo porque por sermos mulheres, sempre seremos A Puta. Então, nada melhor do que se assumir puta logo de uma vez, porque na nossa sociedade isso basicamente significa ser uma mulher livre pra tomar o rumo que quiser na sua própria vida.

Emma Stone em Easy A (A Mentira, no Brasil)
"Você não ouviu? Eu sou a nova vadia da escola"

Sabe quando você lê alguma coisa que te faz sentir que já sabia daquilo o tempo todo, mas que ainda não tinha refletido sobre? Eu sempre soube que mulher nasce pra sofrer. Desde criança, através de coisas sutis como a questão da diferenciação de gênero no vestuário, brinquedos/brincadeiras e comportamento. Por que eu tinha que me sentar como uma mocinha? Por que eu não podia ter um lava rápido da hot wheels ou um Max Steel? Por que eu não podia ter as roupas maneiras da sessão dos meninos? Onde é que tá escrito que azul é uma cor primariamente masculina xô mulheres? Eu já questionava tudo isso, mas não podia fazer nada porque minha avó fazia essas imposições e fim de história.

Fui crescendo e a coisa foi piorando. Eu tinha que ser bonita. Eu devia "cuidar mais de mim mesma". Devia me depilar ("Credo, que perna cabeluda"), fazer a sombracelhas ("Tá na hora de limpar isso, Isabelle"), eliminar todas as espinhas e cravos que aparecessem ("Vai ficar com essa pele feia? Vão achar que você não se cuida"). Devia usar mais vestidinhos, mais sainhas, mais sandalinhas. Tênis é um calçado muito bruto, nada feminino. Por que não usa essa blusinha tão bonitinha? Você não gosta de nada que é bonito. Toda mulher gosta de usar batom. Homem gosta de mulher que se cuida.

Eu tentei ir contra tudo isso, e o que eu recebi em troca foi a total desaprovação da minha avó (inclusive, todas as frases do parágrafo anterior foram ditas por ela diretamente a mim). Pra ela eu sou um ser estranho, uma aberração do mundo feminino e possivelmente lésbica (já não basta o machismo, ainda tem a homofobia por trás desses comentários e padrões a ser seguidos). Mas eu tenho certeza de que se eu escolhesse seguir as recomendações dela, eu seria vista como fútil.

Karen de Meninas Malvadas dizendo a célebre frase "on wednesdays, we wear pink"
Só faltava isso

Aí vem a questão dos relacionamentos: 

A mulher é virgem e/ou nunca namorou/namorou poucas vezes: Que santinha (hmm, deve fazer escondido ou é lésbica). Que dedicada aos estudos, isso aí (pras que ainda são jovens)!! Você não tem medo de ficar sozinha? (pras que já são adultas). Tá se fazendo de difícil.

A mulher tem vida sexual ativa e/ou teve muitos namorados: Tem que pensar menos em namorado! Tem que estudar mais! Isso não é coisa de moça que se dá valor! Daqui a pouco engravida e aí eu quero ver. Vão pensar que você é fácil.

Durante praticamente toda a minha vida eu estive no primeiro grupo. Quando eu era adolescente as pessoas me perguntavam "e aí, tá namorando?" (como se isso fosse da conta delas) e se meu avô estivesse por perto, ele dizia "Ah, nãoo!! Belinha é muito estudiosa, está priorizando os estudos e só vai namorar depois."

Uma mulher negra meio deitada meio levantando e gritando "what the hell"


Não vô, eu não namorava porque quem eu queria não me queria. Simples assim, fatos da vida. Mas ele nunca me perguntou nada sobre isso, aliás. Meu avô acreditava que a explicação era essa e espalhava aos quatro ventos (e precisava de explicação???). Então, um belo dia, eu comecei a namorar sério. Um mês depois, transei. O namoro terminou pouco tempo depois por uma série de questões que não vem ao caso, mas ao me ver obrigada a contar pra minha avó o porquê de eu poder fazer um determinado exame ginecológico, dei de cara com o segundo grupo. Pra ela, eu não me dei valor. Eu fui fácil demais pra ele, e por isso o relacionamento terminou. Porque pra ela, homens só querem se relacionar com mulheres que não sejam tão fáceis como eu fui.

Eu me senti uma vadia. Uma puta.

Nessa época eu já tinha começado o meu processo de desconstrução, mas isso não foi o suficiente. Eu me senti mal demais. Eu comecei a acreditar que as coisas que a minha avó me disse eram verdade, mas felizmente tenho amigas ótimas que me deram uma boa sacudida e voltei aos eixos. Foi a primeira vez em que eu me senti uma puta por fazer minhas próprias escolhas e hoje vejo que não será a última.

Posso ser a puta por gostar de usar shorts curtos. Posso ser a puta se eu (em um milagroso dia em que não estiver me sentindo tímida) tentar investir em um cara por quem me interessei. Posso ser a puta se eu negar a investida de um homem. Posso ser a puta se eu quiser só transar. Posso ser a puta se eu engravidar sem querer. Posso ser a puta se eu quiser abortar. Eu compreendi que não importa o que eu faça ou diga, eu posso ser considerada uma puta porque é impossível se encaixar perfeitamente nessa caixinha rotulada de "Mulher" que a sociedade tanto prega.

Então, que seja. Serei puta desde agora. Serei puta antes que me digam que eu sou. Vou ser aquela puta que ninguém mais tem coragem de meter bedelho na vida, porque sabe que vai ser colocado em seu devido lugar, mas não vai ser fácil. Na verdade esse vai ser um processo horrível e sofrido que vai me tomar a vida inteira, mas prefiro passá-la tentando ser eu mesma do que tentando ser quem acham que eu devo ser.

E eu convido vocês a fazerem o mesmo.

VAMOS SER TODAS PUTAS!!

Uma montagem da Gretchen deitada, onde um arco íris escrito "foda-se" surge à medida em que ela vai abrindo suas pernas que estão pro alto
E ligar o foda-se pro patriarcado

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10 comentários

  1. Eu também tinha uma concepção machista sobre putas, e hoje em dia, quando digo putas, digo da mesma forma que você, mulheres livres que são donas do próprio destino, que fazem suas escolhas sem se importar com a sociedade. Eu tinha nojo de mulher vulgar porque todo mundo me ensinou que mulher com short curto e decote tá pedindo por homem, mas eu mudei de ideia quando percebi que eu usava short curto porque eu gostava e não pq estava tentando atrair macho, e então, me coloquei no lugar delas e vi que o mundo tem uma concepção muito errada do que é ser puta, percebi que liberdade sexual não define o caráter da pessoa, sendo santa ou puta, nada disso define se você é fútil ou profunda, existe muito preconceito com a forma de encarar a sexualidade da mulher.

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    1. SIM, CARA!!!

      Foi recentemente que eu me toquei que repetia os discursos absurdamente machistas da minha família (feito por mulheres, por sinal)e agora tá sendo um horror ter que ouvir essas coisas e saber que a visão delas não vai mudar.

      Acho que pessoas mais velhas meio que não tem salvação, sabe. Não adianta discutir porque elas não vão ouvir, o que é triste

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  2. Muito bom! Que massa que você tacou o foda-se e decidiu ser você! xD
    Minha mãe sempre falou que eu era estranha/esquisita, acho que esses foram os adjetivos que eu mais ouvi sobre mim na infância HAIEUHIEHA. Mas nunca deixei de fazer as coisas ou me vestir como queria. E, pra variar, também desconfiaram da minha orientação sexual, mas relaxaram quando eu arrumei o primeiro namorado - como se acabassem as possibilidades de eu não ser hétero... ilusão define (sou bi).
    Eu acho que essa consciência de que a qualquer momento podemos ser tachadas como vadias/putas é importante, principalmente, para aprender a não julgar a coleguinha. Slut shaming não é ok. Você pode chamar a menina de puta, mas amanhã a puta é você. Até as "santas" são chamadas de puta em algum momento.
    Acho que a "lição" aprendida é mais uma vez a do "viva e deixe viver". Já percebemos que ser puta/vadia não é algo exatamente ruim nessa sociedade, considerando os valores deturpados e o apagamento da sexualidade da mulher (branca e cis principalmente), pode significar apenas que a mulher faz o que quer e não liga pra opinião alheia (e ela é bem foda se consegue fazer isso, btw).

    Só queria fazer uma observação: pras mulheres negras não existe a dicotomia santa x puta. Sempre se é a vadia/puta. Nessa sociedade machista e racista, a mulher negra é exotificada e tida como disponível sempre - o mesmo vale pras mulheres trans. Com isso, o que eu quero dizer é que não tem o mesmo peso para todas as mulheres dizer "somos todas vadias/putas".
    Enquanto mulheres brancas querem mostrar que tem agência, sentem desejo e fazem sexo, as mulheres negras e trans querem mostrar que não estão disponíveis apenas por existir, que não "servem" só para o sexo (inclusive é uma pauta de pessoas negras e trans, não só mulheres).

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    1. Ótima observação!!

      Por isso que eu queria muito posts de pessoas negras e trans falando sobre a realidade delas, porque né. A diferença tá clara aí e eu morro de medo de roubar o lugar de fala de outras minorias, sabe.


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  3. Sejamos tudo Puta! Tô contigo.
    Compartilhando esse texto maravilhoso!

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  4. Muito bom o texto, por muitas vezes já refleti as mesmas coisas.
    Infelizmente pra sociedade só existem classificações binárias, ou é santa ou é puta.
    As mulheres precisam "se valorizar", pois para os homens existem as mulheres pra se divertir e as para casarem. Ou seja, tudo gira em torno disso.

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    1. Exaaaaatamente

      Daí claro, nenhuma pessoa nesse mundo é totalmente uma coisa ou outra, então sempre vai ter alguém sofrendo com essa ideia de binaridade PRINCIPALMENTE AS MULHERES. Como a Lorena disse lá em cima, hoje você pode estar chamando a fulana de puta, amanhã a puta pode ser você. E ainda assim, muitas ainda tem essa mentalidade.

      É triste

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  5. Gente que texto!!! Ameii <3 <3 <3
    É um caminho árduo e doloroso esse da desconstrução, pq por mais que vc esteja decidida a ligar o foda-se e ser vc mesma, vai ser sempre angustiante a certeza de que o mundo continuará te julgando pelas suas atitudes.
    Fiquei anos da minha vida presa ao "o que as pessoas vão dizer?" e deixei de vestir várias roupas que queria e beijar várias bocas que me dava vontade. E por mais que eu nunca tenha sofrido a pressão do "padrão feminino" em casa, ninguém também nunca me disse que ok eu ser do jeito que eu era. Eu pensava de um jeito e agia de outro, pq n suportava a ideia de desaprovação. Hoje vejo as coisas por uma outra perspectiva, porém as vezes ainda me vejo presa a essas regras sociais ridículas e compreendo a dimensão dessa batalha diária que precisamos travar contra essa sociedade machista e contra a deficiência que ele vem criando em nossas mentes ao longo dos anos, fazendo com que nos sintamos diminuídas ou indignas por vivermos nossas vidas do nosso jeito.
    Enfim... Por mais textos inspiradores como esse!!! 

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    1. Ai sua linda HUGDHGIUDHFIGHDFIGHDIGHD

      Foda é isso, né? Em algum momento vai acontecer alguma coisa que nos faça vacilar com as nossas convicções porque estamos imersas nessa sociedade. A expressão "matar um leão por dia" se encaixa bem nisso =/

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