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Wakanda e o acesso à nossa ancestralidade em Pantera Negra

5.3.18Colaboradores CC


Eu não decidi escrever esse texto porque entendo muito sobre quadrinhos e super heróis ou de cinema. Não é esse o caso.

Cresci assistindo o combo do SBT Bom dia e companhia + Um maluco no pedaço, então a representação negra mais forte que eu tinha na época era do Super choque, um jovem negro da periferia, e Will Smith, um... jovem negro da periferia. Junto desses caras, ao longo da vida conheci muitos personagens jovens negros da periferia. A narrativa era sempre a mesma. As narrativas que eu ouvia aqui do Brasil também sempre remetiam à escravidão, um povo sofrido (e no perigo de uma história única, calado), pobre e marginalizado que em algumas das sortudas vezes vencia na vida através de muita luta, esforço e mérito próprio apenas. Uma verdadeira tragédia. 

Ora. Tragédia,  Shah? Sim! Você amigo branco que tem avô Francês / Espanhol / Português / Italiano e enche a boca pra falar do seu sobrenome europeu não precisa se preocupar em pensar numa história ancestral que te traga orgulho porque só a origem do seu sobrenome já te orgulha. Fora as histórias de reis, rainhas, conquistas...

É aí que entra Pantera Negra.


Pantera descobre o véu que nos ilude sobre a nossa ancestralidade. Ele nos arrepia em ver, mesmo que num país fictício (Wakanda), o majestoso passado do qual fazemos parte. A linhagem de reis e rainhas às quais pertencemos e que a diáspora nos tirou. Nem dos nossos sobrenomes, leitor branco, podemos nos orgulhar. Meus ancestrais foram rebatizados pra não sabermos quem fomos, quem somos, de onde viemos. A nossa história é marcada por violência em todas as instâncias, e acredite, nós falamos muito mais sobre como a princesa Isabel “libertou” os escravos do que sobre todas as batalhas que travamos contra essa opressão. Falamos mais dos cativeiros que dos quilombos e das guerras de resistência. Não conhecemos nossos heróis. Não nos lembramos, como Killmonger se refere, que muitos dos nossos antepassados descansam no mar por se recusarem viver como escravos. E Pantera nos recorda que temos sim do que nos orgulhar. E que já é hora de buscar por essa verdade, enaltecer nossos reis, valorizar nossa luta.


Essa é uma ótima resposta pra um questionamento que vi na internet sobre o porque desse alarde todo em relação ao T’Challa, uma vez que temos outros heróis negros por aí. Pantera Negra é uma quebra no discurso cinematográfico do negro coitado (como foi Django Livre em 2012, só que em outras proporções. Vou voltar nisso), tanto no fato de ter a maior parte do seu elenco de pessoas negras como também exaltando as destemidas mulheres no seu enredo. Ah, e isso não é só militância: As Dora Milaje foram inspiradas em mulheres reais, a guarda feminina do rei de Daomé. Eram chamadas Ahosi, existiram até o século XIX e eram vistas como Amazonas africanas. Ou seja, não é só representação: assim como outras diversas referências no filme, é a lembrança real de uma cultura que não conhecemos, e que também não temos acesso.


É difícil colocar em palavras o quão impactante pode ser pra uma pessoa tomar conhecimento da própria história e ancestralidade. Aos 5 anos de idade minha mãe alisou o meu cabelo para que ele ficasse esteticamente aceitável. Eu sempre fui uma criança que gosta de ler, tive acesso à internet e estudei parte da minha vida em escola particular. E ainda assim, até os meus 17 anos eu não tinha ideia de quem eu era, e a verdadeira história dos meus ancestrais. (imagina quem vive em uma realidade menos privilegiada que a minha). Foi nessa idade que no meu colégio entrou um professor, Gabriel, para nos ensinar história da África. Eu lembro exatamente desse momento e de como isso me transformou. Poucos meses depois eu cortei todo o meu cabelo, bem curto mesmo. E renasci. Eu entendi com esse primeiro e pequeno contato com a história do meu povo quem eu era, e eu não era a Shaienne que estava no espelho. Eu era parte de um todo que eu ainda não conhecia muito bem, mas que depois desse primeiro contato pude pesquisar, me aproximar e entender. Foi uma transformação completa da minha autoestima, da minha personalidade e da minha autoconfiança. Eu estava completa porque tive acesso.


Eu acho que essa falta de acesso é muito bem interpretada pelo Michael B. Jordan. Se eu pudesse sonhar com um passado onde meu povo prosperou e prospera, sonharia com Wakanda. Se eu pudesse sonhar que não houve escravidão, sonharia com Wakanda. É com ela que ele sonha todos os dias, porém acorda vendo a nossa realidade e como nós somos órfãos desse país assim como ele. A dor do Killmonger é palpável porque ele é a nossa realidade. Ele é a criança revistada pela polícia aos 6 anos de idade como se fosse um bandido. Ele é a criança que convive todos os dias com a violência nas nossas favelas e da qual ninguém espera que saia nada de bom. Killmonger se forjou nessa dor e violência sabendo da existência de um país irmão que não fez nada por ele nem pelo seus iguais. Ele só conhece o ódio, assim como boa parte das crianças negras desde que nascem. O ódio é um ciclo. Um filme maravilhoso que fala a respeito é South Central (1992).

Bem, Pantera não é o primeiro filme de negros do mundo e nem o primeiro a mostrar a cultura africana. Você tem o direito de questionar isso, mas o que pode não estar percebendo é o alcance e a posição que esse herói ocupa na indústria e em Hollywood. Voltando no que eu havia dito sobre Django Livre, é um puta filme que infelizmente muita gente nunca ouviu falar (acredite, o mundo é maior do que a bolha que vivemos na internet). Já Pantera é um super herói da Marvel, que todo ano lança filmes pra um público de massa, e não concorre ao Oscar, mas chega na favela onde a maior parte da população negra vive. Dessa forma ele tem muito mais impacto na construção do imaginário cultural africano que qualquer outro filme lançado nos últimos anos. Há de se convir também que a Rede Record continuar fazendo novelinhas cristãs retratando os egípcios como brancos é dar 20 passos pra trás na nossa história todos os dias. E por isso Pantera Negra é um strike.


Esse texto é uma tentativa de colocar em palavras todos os sentimentos que o filme despertou em mim e em outros milhares de negros ao redor do mundo, e como isso se reflete na vida dessas pessoas. Entender isso é entender que não é só um filme de super herói. É redenção, é a reconstrução da nossa auto-estima, é uma das formas de questionarmos o racismo no nosso dia a dia. É o acesso. Pantera me presentou com um Magic Kingdom negro e transformou WAKANDA FOREVER no meu “I have a dream” da contemporaneidade. Eu sonho que o pan-africanismo um dia nos salve. E eu agradeço por viver na mesma época em que um filme popular exalte esse sentimento com tanta propriedade.

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Sobre a autora
Shah Aguiar é capricorniana, viciada em papelaria, ama trabalhos manuais e se sente a própria encarnação da Mulan. Ela fazia faculdade de História, ama palmito e acredita no “nada é por acaso” com uma fé inabalável. Escreve poemas e o que mais lhe vem pra transbordar tudo o que sente, mas chora por tudo e luta como pode contra as micro e macro opressões no dia a dia.

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