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Um (não tão) breve relato de quem ainda tá se escondendo

31.8.16Colaboradores CC


Eu tenho 17 anos e foi só nesses últimos meses (3 pra ser exata) que contei pra algumas pessoas que eu gosto de garotas. Não, não me sinto à vontade dizendo que sou lésbica, prefiro falar que gosto de garotas, que não sou hétero ou que sou gay. O que acontece é que eu sou de um lugar onde as pessoas usam esse termo (lésbica) como algo pejorativo, feito pra te rebaixar mesmo, como se fosse um xingamento horrível, e eu não me sinto bem quando uso essa palavra para se referir a mim. 

E isso é completamente okay, porque quem deve escolher qual é o termo mais apropriado pra mim sou eu. Eu é que escolho como quero ser referida. Eu podia, sim, levantar a cabeça e lutar contra o sentido negativo que o pessoal aqui atribuiu à palavra, mas eu não tenho força suficiente pra fazer isso sozinha. Mas não usar o termo não me faz menos lésbica do que qualquer outra — inclusive, não tem essa de ser mais ou menos que outra pessoa da comunidade. Eu não sou menos lésbica do que outra pessoa só porque não fiquei com nenhuma garota ainda.

Como eu disse no título do post, ainda não contei pra todo mundo que eu gosto de garotas. Eu demorei alguns anos pra ficar bem comigo mesma quando percebi que eu não gostava dos meninos do mesmo jeito que as minhas amigas gostavam. Foi um período de muita reflexão sobre quem eu era, quem eu sou e quem eu quero ser (e, na verdade, essas reflexões nunca terminam). Uma coisa que eu posso, com toda certeza, garantir é que eu me sinto muito bem agora. É uma coisa tão maravilhosa que não consigo nem descrever.


Eu fiquei durante um longo tempo questionando por que eu não conseguia sentir uma coisa profunda por meninos e cheguei a jurar que tinha algo errado comigo. “Por que minhas amigas ficam surtando pelos caras e eu só fico tipo ...hm, okay... você é bonito... é... acho que é só isso mesmo...? O que tem de errado comigo?” E então eu fui percebendo aos poucos que o que eu sentia por garotas era diferente do que eu sentia pelos meninos. Não era apenas aquela coisa de “seu cabelo é legal, quero ter um cabelo assim”. Começou, sim, com isso, mas logo foi se desenvolvendo pra “caramba, o rosto dela é muito bonito, os olhos, o sorriso com covinhas e o jeito que o nariz dela se enruga quando ela ri e como sua sobrancelha se levanta quando ela tenta me provocar, e, meu deus, o jeito com que a boca dela meio que se abre quando ela tá pensando numa resposta e...”

Eu demorei um tempo pra perceber o que estava acontecendo. E quando eu percebi... foi como se todas as peças desconexas do meu quebra-cabeça se encaixassem. “Então é isso! Eu gosto daquela meninaaaaa!!! Tipo, gosto de gostar mesmo. Mas... espera aí... o que isso significa, então?”. Mesmo com as peças encaixadas, demorou pra que eu ficasse okay comigo mesma. Tentei fingir que o que eu sentia não era nada, que era uma coisinha boba e que logo ia passar. Que logo eu ia ficar surtando pelos garotos assim como as minhas amigas. Mas não dá pra você se esconder de si mesma. Eu não conseguia mais fingir que o que eu sentia não era nada. Eu estava me sufocando, me esmagando e lutando contra mim mesma só porque eu queria desesperadamente ser como as minhas amigas. Acontece que não funciona.

E agora eu me sinto maravilhosamente bem, mesmo sem ter contado pra todo mundo ainda.

Você não precisa sair contando pro pessoal enquanto não se sentir à vontade. Você não precisa da aprovação de ninguém além da sua própria. Mesmo “dentro do armário”, eu estou muito feliz com tudo. Muito feliz mesmo. É como se eu tivesse parado de me esconder de mim mesma. Como se eu tivesse me revelado pra mim mesma. Como se, agora que eu me aceitei, eu conseguisse me olhar no espelho e enxergar quem eu sou. Como se eu estivesse vivendo e respirando certo pela primeira vez em muitos anos.

Entretanto, uma das consequências de ainda “estar no armário” é que eu ouço coisas que me deixam mal e às vezes não sei como reagir e acabo guardando tudo pra mim. E esses comentários vêm até de pessoas próximas, tipo a minha própria família ou meus amigos. Eu fico nesse impasse de discutir com quem tá falando merda (e isso me deixa esgotada e machucada) ou ignorar. Outra coisa ruim é que as pessoas não sabem sobre você, então a parte de ficar com alguém e namorar é complicada. Você não tem amigos ali perto pra dar aquela ajudinha, é você e você — e muitas vezes você nem tem certeza se a pessoa que você gosta também fica com garotas.

Estar “no armário” é contraditório porque ao mesmo tempo em que te deixa teoricamente protegida, também te machuca.

Acho que uma coisa importante a ser dita sobre a visibilidade lésbica (mesmo quando você ainda não contou pra todo mundo — e isso é perfeitamente okay) é que a gente existe. Não estamos tentando chamar atenção, não estamos “passando por uma fase”, não estamos confusas, não é porque “não encontramos o cara certo ainda” ou qualquer outra coisa do tipo. Eu estou aqui, eu existo, eu quero ser representada, eu quero ser ouvida porque eu tenho sim uma voz e eu quero poder sair nas ruas sem ter medo de não voltar pra casa inteira. Eu gosto de garotas, sim, e não tenho a menor dúvida quanto a isso. E eu estou aqui pra dizer que não é porque eu não contei pra todo mundo ainda que não existo.

Eu me machuco ouvindo as coisas ruins e eu tenho medo de contar sobre mim pras pessoas justamente porque não consigo lutar sozinha contra tanta agressividade. Eu tô cansada de ter medo, eu tô cansada de ser machucada e não poder me defender por medo de ser atacada com ainda mais violência, eu tô cansada de olhar pras novelas, pros filmes e pros livros e não me encontrar ali. Eu tô cansada de ter minha representatividade morta em praticamente todos os espaços em que eu ainda consigo aparecer. Eu tô cansada de ser atacada dentro da minha própria casa. Eu tô cansada de lutar sozinha. Eu tô cansada de me esconder para que outras pessoas se sintam confortáveis.

Eu perdi praticamente toda a minha adolescência por medo de ser quem eu sou. Não, espera. Medo de ser julgada e atacada por ser quem eu sou. O que é ridículo. Eu não me importo com o que as pessoas pensam de mim, eu realmente não ligo. Podem pensar o que quiser, foda-se. O que eu tenho medo é de ser abandonada, de ser ignorada, de ser tratada como alguém que não devia fazer parte da sociedade. Enquanto as pessoas mantiverem os pensamentos tóxicos dentro das cabeças, ok por mim. Eu não posso fazer muito quanto a isso. Agora o problema é quando esses pensamentos saem em forma de ataque — físico, simbólico, psicológico — para me machucar. É disso que eu tenho medo. É isso que me fez e ainda me faz ficar acordada por horas deitada na cama encarando o escuro. Porque infelizmente eu ainda vivo num ambiente tóxico e é preciso ter muita coragem, paciência e força pra aguentar ficar aqui sem explodir.

Se eu for passar alguma mensagem com esse post é que: você existe. Você é válida, seus sentimentos são válidos e reais e você não precisa que outras pessoas aprovem isso. Eu estou com você nessa luta por representatividade e por um ambiente que não seja tóxico. Eu não quero mais me esconder por medo do que vão fazer comigo. Eu não quero que ninguém tenha que se esconder por medo da reação dos outros. Não é porque você não contou pra todo mundo ainda que você e seus sentimentos são invisíveis, dispensáveis e descartáveis. Eu existo, você existe, todas nós existimos e somos reais.


Eu quero poder sair na rua de mãos dadas com a garota que eu gosto, eu quero poder ir num restaurante romântico, eu quero poder passear no parque e dividir o mesmo sorvete, eu quero me ver representada num filme (e não só como personagem secundária), eu quero chamar minha família pro meu casamento com uma garota, eu quero dormir abraçada com uma garota, eu quero viajar o mundo com uma garota, eu quero voltar pra casa depois de um dia exaustivo e beijar uma garota. Eu quero poder amar uma garota.

M.

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5 comentários

  1. Nossa, esse texto foi A+, 10/10, tudo de bom, excelente e necessário. Chega a ser um choque pra mim ver uma pessoa de 17 anos com TANTA COISA sobre os ombros. As coisas que a sociedade faz :-/

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  2. Nossa, como é incrível a internet, é incrível saber como uma pessoa pode passar ou estar passando pelo mesmo que você passa ou passou. Eu ainda não escrevi um roteiro de quando tudo isso começou, mas eu me senti muito assim, achava a palavra Gay muito forte, não á toa pela minha infância e adolescência toda eu lutei contra ela, era como se fosse uma definição muito errada e muito malígna. Mas com o tempo isso mudou, depois de eu me entender, desconstruir algumas coisas e ir me assumindo para meus amigos essa palavra foi ficando cada vez mais confortável e hoje tenho o maior orgulho.
    Restam apenas meus pais saberem. É pra mim o maior passo, a cartada final, o xeque-mate de eu me assumir por completo. Vivo em um ambiente muito tóxico também. Será tudo ou nada. Tenho muito medo do que está por vir, mas sinto que preciso encarar, não porque seja de interesse de alguém minha sexualidade mas porque eu não quero fingir mais nada, começarei um acompanhamento psicoterapico em uma faculdade (de graça!) espero que isso me dê forças ou pelo menos me ajude a usar as forças que tenho e que construí nesse caminho.
    Procure algo do tipo na sua cidade - mas é melhor completar 18 anos antes.
    Força pra gente.

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