Adriana Araujo carnaval

Cartas aos nossos Garis cariocas

10.3.14Igraínne


Bandeira de plástico. Rio de Janeiro, março. Carnaval carioca sob muita expectativa, e o lixo que o emoldura também. É a ala laranja? É o grito do samba-enredo? Não, não é motivo de festa, é motivo de choro. Havia tanta lágrima que até mesmo o céu derramou a tristeza, lavando a avenida. Garis em greve, o lixo se acumulando, o prefeito mostrando seu descaso ao jogar seus restos no chão - e sendo filmado ao fazer isso.

Eu fiquei pensando: quantos sonhos vivem nesses garis? Quantos deles não imaginavam virar jogadores de futebol, médicos, professores, advogados, artistas e poetas, quantos deles queriam ser vitoriosos em suas profissões idealizadas antes de se tornarem... homens de laranja? Enquanto eu pensava nisso, uma coisa ficou muito clara: todos eles tinham sonhos maiores que o lixo. Você não pergunta a uma criança o que ela ser quando crescer e ouve "eu quero ser gari!". 

A profissão dos excluídos
Assim como os garis são homens com objetivos perdidos, há inúmeras outras pessoas nesse mundo trabalhando pelo dinheiro escasso. Entregadores de pizza, caixas de supermercado, empregadas, seguranças, motoristas, guardas noturnos... Imaginem quantos dentistas há entre eles. Quantos homens com talentos excepcionais, quantos médicos, jornalistas, quantos presidentes. A profissão de todos eles veio pelo destino, não por escolha. A coragem de encará-las não havia, o que havia era coragem para não descartar tais funções no meio de uma crise.

Esses homens merecem mais respeito do que as pessoas de poder que governam muito partido político. 


A instrução não é de quem se esforça, e sim dos sortudos. Negar aos garis um direito é como negar a uma população uma necessidade. Na realidade, talvez sejam eles os heróis, tão preocupados em limpar, em limpar e limpar. Como mães de uma cidade dita maravilhosa. Eles têm até um gari famoso, o senhor "Sorriso", um homem capaz de sorrir mesmo catando os restos de terceiros. 

Escravidão?
A foto de capa e mais alguns textos que eu encontrei pela internet me fizeram perceber que profissões como essa, ou outras menosprezadas, são como um atestado, uma herança do tempo da senzala. Quase um "12 anos de escravidão" brasileiro. Eu nunca encontrei um gari branco, e se você encontrou, traga a público porque ele também será famoso. A ignorância dos fortes é pensar que o homem de laranja também não é homem, é como um animal. E invisível.


Bom, eles foram inteligentes o bastante para pararem quando a cidade também parou: durante o carnaval. Fico imaginando quais categorias corajosas também farão o mesmo - na copa. O medo não existe para esses homens. O medo só existe para o senado, que não discutiu nem um segundo depois de ser flagrado jogando lixo no chão. Esses, na verdade, são os covardes: o medo era que a posição dos garis chamasse atenção, virasse outro "junho de 2013", outra "revolta do vinagre".

Afinal de contas, políticos que reconhecem o poder de um povo, ainda que a contragosto, são mais votados que os demais. Ou não?

Cartas aos Garis
Para encerrar o post, trago aqui três cartas aos nossos heróis garis cariocas, homens de muitas origens, muitos sonhos e pouca, enfim, ignorância diante do inimigo. Eles são, em suma, nossos homens de guerra. Essa batalha vencida foi apenas uma de muitas.


"Caro gari, 
O fato de serem eles os fardados não torna fatal a nossa queda pela lateral. Está me ouvindo? Ouve o que eu digo? Aproxime-se, rapaz, que eu repito, tim-tim-por-tim-tim para você, você precisa sobreviver, presta atenção aqui, bem aqui. Quando você os ultrapassar, não deixe que ninguém o veja, nem mesmo aquela mariposa, nem por um segundo que seja. Passe com cuidado, abaixe-se sob a sombra das árvores e atravesse a rua olhando para os dois lados. Não seja atropelado. Isso é sério, não o escolhi sem critérios. O fato de serem eles os fardados não faz de você uma vítima fatal dos homens sem ideal. Você é um voluntário patriótico, levante devagar, corra pra outra ponta, porque lá vem bomba. O cartaz não é importante, ignore a bola, proteja o seu sangue. Eu falo sério, eles gritam coisas como “não jogue lixo no chão”, mas lá estão eles dando uma de durões. A verdade sempre foi: não jogue lixo nas minhas coisas, e essa cidade é nossa casa, não a atravesse empunhando faca. 
Caro gari, estou aqui pra me redimir. O apoio é a força que ergue sacos plásticos, não foram os fardados quem criaram os hábitos. Somos, juntos, os encalacrados. Mal sabem os fardados, contudo, que vocês fabricam o nosso mundo. Preferia ter vocês no senado, no mais alta cadeira lá fincada, a tê-los limpando as ruas ingratas. O lixo de verdade sempre esteve onde o dinheiro sobra mais. 
"Não chamaria de greve, é um motim", disse o homem de sobrenome Paes. Essa guerra teve fim?” 
Igraínne M., estudante de Literatura e colunista do ConversaCult

"Caro senhor gari, 
É com imenso prazer que lhe escrevo parabenizando-o pela coragem e audácia de cruzar os braços num momento tão importante pra cidade: o momento em que os olhos do mundo estão voltados pra nossa festa, pro nosso carnaval, o momento em que a cidade está cheia de turistas e que as autoridades estão cheias de dedos, tentando deixar tudo perfeito “pra inglês ver”. Porque as nossas autoridades não ligam se o senhor ganha pouco, não ligam se o senhor não está pulando seu carnaval porque está ocupado deixando tudo limpo pros outros se divertirem. “Eles já sabiam que seria assim”, alegam as autoridades. Sim, o senhor já sabia que seria assim, mas ninguém lhe disse que o senhor não poderia reclamar sua insatisfação, ninguém lhe disse que o senhor não poderia protestar por melhores condições, ninguém lhe disse que seu direito à greve seria chamado pelas autoridades de “motim”. Não é o senhor quem está errado. O que está errada é essa nossa cultura podre de “vamos jogar lixo na rua pra dar emprego ao gari”, é essa falta de educação da população, é essa falta de respeito com as categorias mais necessárias, como a sua, senhor gari. "
—  Adriana Araujo, estudante de jornalismo e colaboradora do ConversaCult 

"Caro gari, 
O Carnaval passou, mas quem sambou foi você. Fez valer a força que tem, deixou nítida a importância do seu trabalho, mesmo para aquele que passa e nem dá bom dia, mesmo para aquele que joga o lixo no chão sem nem pensar. 
Queria que uma manifestação também pudesse mudar a mente das pessoas, não só a mente das elites, mas a de todos os outros, incluindo a sua. Só para garantir que não serão mais necessárias manifestações em busca de direitos tão básicos. Só para garantir o bom dia e o lixo na lixeira."
— Felipe Fagundes, estudante de Ciência da Computação e analista de sistemas. 

"Caro gari, 
Tenho acompanhado a última semana de sua difícil caminhada e gostaria de te parabenizar pela persistência. Injustiças acontecem todos os dias em todos os lugares e, com absoluta certeza, elas não deixarão de acontecer se ninguém levantar e agir. Você e seus amigos provaram a todos que, por mais clichê que a frase possa parecer, a união realmente faz a força. 
Não há sindicato corrupto, chantagem ou ameaça que possa competir com um grupo que conhece seus direitos e está determinado a brigar por eles. Que a sua vitória possa servir de exemplo para tantos outros movimentos e causas marginalizadas pelo poder público do Rio de Janeiro. Que a sua vitória te sirva de encorajamento para continuar lutando em vez de ser apenas uma forma de calar sua voz. Que a sua vitória um dia possa ser percebida como uma vitória de todos nós."  
— Rebeca Chaves, estudante de Publicidade e Propaganda. 



Vale a pena dar uma olhada também no infográfico surreal do lixo. Só clicar aqui.
A maior parte das fotos advém da página Mídia Ninja do facebook.

O lixo que você taca no chão, já pensou em catá-lo?

- Igraínne M. 

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2 comentários

  1. Olá!
    (Ah, até o momento em que comentei, estavam faltando duas letras em "Imaginem", na 3° linha do 3° parágrafo)

    Inicialmente, gostaria de destacar uma frase sua, que achei simplesmente fantástica: "A profissão de todos eles veio pelo destino, não por escolha. A coragem de encará-las não havia, o que havia era coragem para não descartar tais funções no meio de uma crise."

    Concordo plenamente contigo, Igraínne. Não é qualquer um que possui tal coragem para encarar uma função mesmo sabendo que ela o tornará invisível perante a sociedade. E o fato é que realmente não é comum pararmos para pensar no quão dignos e valentes eles são. Há, inclusive, aquela frase que costumamos usar como brincadeira, em diferente contextos, dizendo que "eu poderia estar roubando, mas estou aqui..."

    A propósito, essa é a mais pura verdade! Eles poderiam mesmo estar roubando. Seria mais simples, rápido, fácil. E seria até mesmo compreensivo, já que a maior parte deles não têm uma família para dar suporte ou, em outros casos, são eles que precisam dar suporte a alguém - seja marido, esposa, filho, não importa. São homens e mulheres se sacrificando por um prol maior. Negando-se a agir contra sua própria conduta e ensinando lições que quase ninguém pára para aprender. Por que é tão difícil enxergar isso? Por que ainda não nos demos conta de que todos eles são heróis?

    Li a matéria Os Invisíveis, e ela me comoveu bastante. Mas muito mais importante do que isso é que, se eu quiser mesmo que haja uma mudança na sociedade, é preciso que eu a realize. Uma regra válida para todos nós.

    Espero que a discussão continue aqui embaixo, porque creio que ela nos agregará muito.
    Ah, e parabéns pela matéria.

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    Respostas
    1. Oi, Luan!

      Muito obrigada por comentar e mencionar o erro; ele já foi consertado. Quanto a discussão continuar nos comentários, acho que a proposta seria exatamente essa (embora eu tenha demorado um pouco para responder aqui). A sua posição e as suas observações foram extremamente pertinentes ao debate.

      E o texto sobre as pessoas invisíveis é realmente muito bom. Eu fico imaginando, caso uma pessoa da família de um de nós, de qualquer cidadão, se vestisse de laranja por um dia e se disfarçasse de gari, se nós seríamos capazes de reconhecê-la - ou quem sabe se alguém a olharia com os mesmos olhos. Há certo nível de hipocrisia na sociedade, pessoas que são grossas com atendentes do Mcdonald's, por exemplo, por motivos muitas vezes que nem sequer são de responsabilidade do trabalhador. E então, mais tarde, essas mesmas pessoas grosseiras dizem não ter preconceito social.

      Talvez o preconceito social esteja tão enraizado em nossas mentes que não percebemos algumas atitudes comuns do nosso dia a dia, coisas ditas banais, como até mesmo dar uma chance ao gari e tratá-lo como um humano trabalhador, e não como um animal que simplesmente passa por nós todos os dias. Talvez eles sejam os heróis que estávamos procurando, como eu disse na própria postagem. O trabalho deles já vale por mil outros juntos. Afinal de contas, eles limpam a cidade que as pessoas sujam - e quando digo pessoas, me refiro a todos que aqui vivem. É como um acúmulo de tarefas, embora essa comparação talvez tenha ficado confusa em minhas palavras.

      Enfim, muito obrigada por comentar! Espero que volte ao blog outras vezes, também :)

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