Oi, meninas, hoje quero compartilhar com vocês um conceito de representatividade/escrita que se chama unmarked state. Eu conheci através de uma aula que eu tô fazendo e aparece no livro "Writing The Other" (Escrevendo o Outro), da Nisi Shawl e da Cynthia Ward. Unmarked state em português significa "o estado sem marcação."
Primeiro, você precisa entender que na ficção existem Marcadores, são coisas que nos indicam como esse personagem é. Por exemplo: Um personagem usando camisa velha rasgada. O tipo da camisa pode ser um marcador de classe social. Uma pessoa entrando de chinelo no shopping. O chinelo dentro desse contexto pode indicar que a pessoa é carioca. Falar que uma pessoa é gorda é, bem, um marcador do tipo físico dela.
Esse estado sem marcação é quando teoricamente se cria um personagem "universal." Imagina que eu quero contar a história de uma pessoa que atravessou um rio. Se eu falar que a pessoa tava grávida de um bebê e era negra, já deixa de ser uma história "universal," porque eu não tô mais contando uma história sobre qualquer pessoa atravessando o rio, eu tô contando a história sobre a pessoa negra grávida que atravessou o rio.
A questão é que o que a gente tem como neutro é um homem cis branco hétero meio jovem magro, etc.
Se eu falar "a história de alguém que atravessou o rio," você dificilmente vai imaginar um cara indiano gordo de cadeira de rodas. Poderia ser ele. Mas você tá imaginando um homem branco.
Aí hoje eu encontrei um post no tumblr que traduz isso perfeitamente.
Alguém postou essa imagem com a legenda abaixo:
"os personagens do looney tunes vivem em uma sociedade nudista" [ou seja, se apareceram essas mulheres com vestidinhos significa que os outros esse tempo todo estão pelados]
Aí alguém comentou: Um bom exemplo de como a sociedade pinta o homem como 'padrão' e a mulher como um desvio da norma que precisa de marcadores extras. [no caso, o cabelo e o vestido são os marcadores]
Você vai ver isso o tempo inteiro. UMA TARTARUGA. Nossa, como eu faço as pessoas saberem que é uma tartaruga MULHER? Pera, eu preciso de um "marcador" pra indicar que é feminino. Faz uma tartaruga rosa, ou com florzinha na cabeça, ou purpurina. Pronto!
Acontece muito isso no curta da Disney sobre dois vulcões que se apaixonam. O vulcão "homem" tem cara de montanha mesmo, é praticamente uma montanha com rostinho. Mas deus me livre parecer que ele está apaixonado por um vulcão homem!! Nós precisamos deixar claro que esse outro vulcão é uma mulher!!! Coloca cabelo, coloca uma florzinha na cabeça, faz mais magro, faz com traços mais finos.
A questão disso, é claro, é que cria uma cultura que centra o homem (branco het, etc) como padrão universal, enquanto marginaliza a maior parte das pessoas. E essa mesma cultura afeta nossa vida inteira. É o filme da Mulher Maravilha, que é o filme "pra garotas," enquanto Batman todo mundo assiste. É a autora negra que não consegue publicar um livro porque supostamente as histórias dela são só pra pessoas negras, enquanto o autor branco tá recebendo Oscar por contar a 2298ª história com o mesmo homem branco, que é considerado "um relato universal do nosso tempo." É mulher sendo criada pra arrancar os pelos da perna, usando maquiagem, usando roupa com babados ou brilhos, para poder ser diferenciada e vista como mulher.
Depois da estreia de Estrelas Além do Tempo, filme protagonizado por três mulheres negras que foi um sucesso, a atriz Taraji P. Henson escreveu no instagram sobre como ouviu a vida inteira que "filmes protagonizados por mulheres negras não podem fazer estreia nacional ou internacional [porque não vende]."
Cria uma ideia falsa de que minoria não vende e, com isso, ninguém investe dinheiro.
E se você precisa ainda saber por que isso é um problema, indico a tag representatividade no CC.
Enfim, toda essa discussão começou porque eu tava discutindo descrição de pessoas com o grupinho de escrita que eu participo e o ponto é que: se a sua história não fala, claramente, como o seu personagem é, as pessoas vão ler como se ele fosse do "estado sem marcação." Ou seja, se você não descreve pele, etnia, tipo físico, vai ser todo mundo magro e branco.
Harry Potter é um dos exemplos, onde os livros quase não tem descrições exatas a respeito de personagens, mas nos filmes todo mundo é branco dentro padrão e ninguém nem parou pra falar "ué?" porque a maioria leu mesmo como se fosse todo mundo branco.
Livro: não tem descrição, pode ser qualquer um!
Como a gente vê:
Um detalhe importante que eu lembro agora é que se você só descreve quando o "outro" aparece, você cria uma exotização. É o que normalmente acontece, aliás. A gente só sente necessidade de descrever quando foge do "padrão." Ninguém lembra de avisar que cada personagem magro que aparece é magro, mas quando um gordo aparece, aí entra a descrição sobre a barriga da pessoa. Já li inúmeras histórias que descrevem "Chegaram uns homens" ou "A mulher entrou na sala," a não ser quando é especificamente uma pessoa negra, aí nesse caso escreve "um homem negro chegou."
Essas coisas mostram como a gente é acostumado a ver a pessoa branca como padrão, como a gente é voltado pra considerar em primeiro lugar gente branca.
Entender que isso acontece, como escritor, acho que nos ajuda a repensar como nós descrevemos os personagens, a evitar exotização de certas características e não reforçar o mesmo tipo como padrão universal.
Como pessoa no geral, vai ajudar a entender quando nós mesmos reforçamos e passamos pano nessa ideia de neutralidade.
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1 comentários
Muito bom, Dana!
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