abuso sexual Ariane Carmo

Sobre pais falarem de sexo e abuso sexual para seus filhos

22.10.17Colaboradores CC


Meus pais me ensinaram o que era sexo e abuso sexual quando eu era tão pequena que não lembro quantos anos tinha. Me ensinaram os dois juntos. Minha mãe me disse que qualquer homem que tentasse fazer qualquer coisa comigo eu deveria contar pra ela e ela me protegeria, inclusive meu pai - isso na presença dele.

"Se qualquer homem tentar fazer algo contigo, você deve me contar. Inclusive se for um amigo do papai ou da mamãe. Inclusive se for um tio ou um parente. Inclusive se for o seu próprio pai" - e apontou pra ele. Na frente dele - "você pode me contar e eu vou te proteger. Eu não vou brigar contigo e você nunca será culpada".

Meu pai jamais me fez ou faria mal, e também não se ofendeu. Ele sabia o que eles estava fazendo, que estavam criando o vínculo para que eu sempre sentisse segura e me ensinando a me proteger.

Eles me disseram, ainda, com todas as letras, que se alguém se aproximasse de mim eu nunca seria culpada e não deveria acreditar se a pessoa me dissesse que eu era errada ou não podia contar pra mamãe, que ela ficaria brava ou me iria me castigar, pois ela não iria. Ela me protegeria.

E que eu nunca deveria ter nenhum "segredo" com nenhum adulto, pois adultos não tem segredos com crianças, mesmo segredos bobos do tipo "vou te dar uma bala". Que sempre que alguém falasse ou fizesse algo dizendo que eu não podia "contar pra mamãe", imediatamente eu deveria falar. Assim, meus pais sabiam quem eram as pessoas que gostavam de "segredinhos" e que tipo de coisa elas falavam pra mim. Quando era só bobagem, vi meu pai falar com os amigos deles "olha você falou com a minha menina tal coisa e pediu pra ela não contar, eu sei que não tem maldade mas aqui a gente não faz isso pra ela não acostumar, pois tem muita gente má no mundo". Hoje uma coisa que eu não faço é ter segredo com criança dos outros, "vou te dar essa bala não conta pra mamãe". Eu faço isso sem maldade, mas um pedófilo usa esse tipo de coisa pra ir envolvendo a criança até ela não conseguir contar pra mamãe o que tá acontecendo, percebem?

Meus pais também não me deixaram sozinha com quase nenhum adulto. Nas poucas vezes em que isso aconteceu, e eu posso contar numa mão, eu sabia uma lista de coisas que poderia ou não aceitar ou fazer e a partir de onde seria estranho. Quando eu voltava eles sempre me perguntavam tudo que aconteceu - e eu contava, detalhe a detalhe.

Eu era tão pequena que nunca ouvira falar de nada daquilo. Nenhuma outra fonte chegou em mim antes deles. Tão pequena que só conseguia pensar que é muito nojento alguém colocar a parte que faz xixi em outra parte que faz xixi, e eu jamais faria isso. Tão pequena que não lembro nem quando foi. Não lembro quando foi, mas vinte e poucos anos depois, ainda lembro da cena inteira. Dos meus pais rindo quando eu disse que nunca faria sexo ("eca"). E da minha mãe apontando para o meu pai quando falou que me protegeria, inclusive dele - e meu pai também, inclusive dela. Porque esta conversa foi vital pra mim. Naquele momento se firmou um pacto tão poderoso e consciente que eu nunca me esqueci: meus pais estariam sempre atentos mas se mesmo assim alguém me oferecesse perigo eu saberia alertá-los, e eu nunca seria culpada e eu sempre estaria segura - fosse de quem fosse.

E não, eu não tive nenhum trauma. Não tive uma iniciação sexual precoce por saber o que é sexo, nem tive algum tipo de bloqueio por me avisarem o que é abuso, nem perdi o senso de privacidade por não ter segredos com adultos na infância. Eu só fui protegida de abusadores, só isso.

Relatei essa conversa num espaço entre mulheres e elas disseram que eu deveria repassar a mais pessoas, para que outras mães usassem como molde. Então eu deixo aqui. Sei que vocês que já tem filhos não gostam de palpites de quem não tem. Eu não sou mãe, mas eu sou filha, e uma filha feliz pela abordagem que meus pais tiveram: limpa, clara, sem meio termo, sem brecha. E por minha mãe me dizer que se qualquer homem tentasse me fazer mal eu poderia procurá-la, mesmo meu pai, na cara dele, porque eu sabia que ela me defenderia - fosse de quem fosse.

Conversem com seus filhos sobre sexo. Conversem juntos. Contem a eles o que é sexo antes de qualquer outra fonte, pois podem contar da forma errada. Expliquem o que é abuso, mesmo que eles ainda sejam muito pequenos, pois eles não são pequenos demais para os abusadores. Expliquem que ninguém pode tocar ou fazer nada com eles. Conversem diante dos seus companheiros e companheiras, que se forem boas pessoas entenderão a importância do que vocês estão fazendo e não irão se ofender. E firmem um compromisso sagrado de protegê-los de qualquer pessoa, inclusive um do outro.

Eu só sou muito grata pelo que meus pais fizeram. E espero que todas as crianças possam ter a chance que eu tive. Permita que no futuro seus filhos sejam gratos, também.

***

Sobre a autora: Sou escritora, baiana, feminista, advogada e contadora de histórias. Você pode me seguir aqui.

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1 comentários

  1. Que vontade imensa de chorar.
    Eu não tive isso. Quando minha mãe explicou pra mim o que era sexo, eu já estava sendo abusado. Algum tempo depois eu aprendi na aula de ciências.
    Isso me afeta tanto, mas tanto, hoje. Foram uns 7 anos guardando isso. Minha mãe me culpou.
    Eu sofro muito ao imaginar que isso acontece com várias crianças, e que elas podem ser rostinhos conhecidos meus.
    A pior sensação da minha vida foi quando suspeitaram de mim.

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