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[Resenha] Ninguém Nasce Herói, do Eric Novello

7.8.17Dana Martins


Pra falar a verdade, eu não queria muito ler esse livro. Não, deixa eu falar melhor: Eu tinha curiosidade de ler Ninguém Nasce Herói, o que é diferente de "tô com vontade de ler esse livro." Mas acho que às vezes a gente não tem escolha. Tem livros que entram na nossa vida, caem no nosso colo e falam: É AGORAAA.

"Ninguém Nasce Herói", do Eric Novello, é contado pelo protagonista Chuvisco meio que acompanhando a vida de um grupo de amigos durante uma ditadura brasileira num futuro bem próximo. E acho que a parte principal da história é essa mesmo: ver a relação do Chuvisco com os amigos e como a vida vai ficando diferente por causa dessa ditadura.

E o nome do livro é "Ninguém Nasce Herói" - então, se ninguém nasce herói, como você chega a esse ponto de se tornar herói?

lembre de comprar o livro quando você puder,
compra pra os amigos, compra pras tias, compra pra biblioteca 

Além disso, o protagonista tem alguma doença mental que faz ele ver coisas que não são reais, tipo borboletas voando ao redor das pessoas ou monstros sombrios, o que traz pra história um toque de extraordinário e até de poético, já que a gente tá vendo o que se passa pelos olhos do Chuvisco, que às vezes cria essa fantasia ao redor de tudo. Às vezes você não sabe nem o que é de verdade mesmo ou o que ele inventou, nem ele. 

Uma das coisas que eu gostei sobre isso é que é mostrado de um modo mais realista, o personagem fazia terapia e os amigos sabem do que ele tem, então ficam de olho e respeitam os limites dele. 

No geral, ler a história foi... Bem, no início eu não tava gostando, não. Tava lendo só pra esperar chegar a história ou sei lá. Gostei que os capítulos são bem curtinhos, então eu lia um aqui e outro ali às vezes. 

Acho que é porque a história não tem muito "ESSA É A MISSÃO, VAMOS SALVAR O DIA," é mais o Chuvisco vivendo, a gente conhece os amigos dele, vê como a ditatura muda a realidade em detalhes tipo não poder falar de certas coisas na rua ou ir para bares escondidos pra poder beber e ter uma noite tranquila. Aí entra uns troços de Santa Muerte, um grupo de resistência, e por causa de Acontecimentos™ o protagonista conhece um cara chamado Junior e fica atrás dele. Eu sinto que essas coisas talvez deveriam causar um mistério, mas eu li tipo "ok." 

Agora pra o final, a história foi engatando. Acho que li as últimas 150 páginas direto, meio porque eu tava gostando, meio porque eu sou teimosa. Eu comecei a realmente querer saber onde essa história ia dar. 

No fim, não sabia se eu tinha gostado ou não, decidi que não importa. Sei lá, tem umas histórias que causam isso. Continua sendo algo que eu queria ler? Não. Foi algo que no fim eu gostei de ler? Sim. Tô feliz que eu li. 

Fico pensando que de certo modo Ninguém Nasce Herói é quase uma história de terror. Às vezes até sufocante pra mim, porque é tão perto da realidade, tão perto que eu não tenho nem certeza se não é a realidade. A ditadura/distopia do livro é aterrorizante porque é completamente possível. E com Trump nos EUA e toda a merda do nosso governo, eu não sei até que ponto isso não vai acontecer.

Ao mesmo tempo, tanta merda descrita no livro acontece mesmo. 

Uma das coisas que eu gosto no livro é como mostra a normalidade da ditadura. Por exemplo, pensa nas coisas horríveis que aconteceram no passado, tipo campo de concentração, escravidão ou enforcamento em praça pública, e a gente fica: como é possível? Como deixaram isso acontecer? 

Quando eu era adolescente lia os livros da História pensando que tudo estava no passado e finalmente tínhamos conquistado um futuro melhor, até que eu fui crescendo e uma sombra apareceu. Estamos no futuro melhor mesmo? Que tipo de crueldade tá acontecendo na minha frente que eu tenho o privilégio de não ver?

E Ninguém Nasce Herói não é uma história como Jogos Vorazes que parece acontecer em outra realidade até, onde todo mundo sabe que a Capital é opressora. Ninguém Nasce Herói é uma história que acontece numa realidade como a nossa, onde pais bonzinhos e senhorinhas na rua aplaudem e concordam absolutamente com o que coloca a vida dos próprios filhos em risco.

A verdade é que, pra muita gente, a vida numa ditadura horrível não é tão diferente. São aquelas pessoas que podem dizer "nada a ver acabar uma amizade por política," porque pra eles respeitar a humanidade dos outros é um conceito abstrato. 

Então nesse mundo de Ninguém Nasce Herói a realidade é bem parecida com a nossa. A diferença é só que alguém como eu poderia desaparecer de repente um dia qualquer por escrever um texto como esse.

É aquilo: Felizmente, nós ainda temos liberdade o bastante pra respirar. Mas por outro lado... 

Sei lá, só enquanto eu escrevia isso fiquei pensando que a gente é teoricamente livre, mas aí eu lembro de um texto que eu acabei de ler no tumblr de uma pessoa falando "Legal. Meus pais se autoconvidaram pra ir não sei aonde comigo, e agora eu vou ter que passar a noite fingindo ser quem eles pensam que eu sou em vez de poder ser gay com os meus amigos." 

Eu fico pensando numa garota que veio falar comigo uma vez sobre querer ir numa parada LGBT+, mas não sabia se contava aos pais ou não, e isso era uma fonte de conflito. Porque ela não queria mentir (mentir é ruim!), mas ela também não queria ter que aguentar ele tentando boicotar e falando merda. E ela veio do nada falar isso comigo porque não tinha nenhum amigo com quem pudesse falar.

Eu penso também na série de comédia/alto astral que eu tava vendo ontem, The Bold Type, e aí quando a personagem tá falando com a outra e diz "gay" um pouco mais alto, as pessoas ao redor olham e fica um certo silêncio, até ela continuar a conversa um pouco mais baixo.

Eu fico pensando nesses detalhezinhos de silenciamento que passam despercebidos, que a gente trata como normal, que são bem parecidos com a forma que os personagens no livro precisam evitar certos assuntos pra se proteger. "Ah, mas ninguém vai morrer, por-" O pior é que às vezes é que vai mesmo. Se não isso, morte não é a única forma de destruição.

E isso é uma das coisas interessantes dessa realidade de Ninguém Nasce Herói: ela é tão perto da nossa realidade que é difícil diferenciar. É difícil saber se a gente é a senhorinha que ignora os gritos do lado de fora. E mesmo as coisas que parecem fictícias, parecem estar a um passo de virar realidade.

Mas o livro não é pra baixo, não. Pelo contrário, ele é sobre esperança, união e resistência. Tem uma página maravilhosa, que é onde o título do livro aparece, mas eu não vou colocar porque eu já falei muito e porque eu não quero dar spoiler. Se Ninguém Nasce Herói fosse um jogo de videogame, essa é a página que você ganha quando desbloqueia a conquista.

Esse livro me lembrou um pouco a O Ódio Que Você Semeia (muito bom, leia. já fiz resenha) e Alif - o Invisível (já fiz resenha também), principalmente porque os 3 terminam em manifestação. Escrevendo isso aqui também lembrei de Os Anos de Fartura (escrevi aqui sobre ele). E é engraçado é que esses quatro lidam com resistência, opressão e revoltas, mas cada um se passa em um país diferente. Curioso.

Mais curioso ainda é eu ter lido todos esses livros. 

E como eu sempre falo de representatividade, o protagonista é um garoto que não é hétero. Como ele diz, "eu olho pra os dois." Não lembro se o termo bissexualidade ou pansexualidade já foi inventado nesse universo. Na verdade, quase ninguém é hétero e a forma como sexualidade é tratada é muito legal. Tem personagem trans também.

*lembrete e gatilho de que essa é uma história sobre opressão e violência sofrida por minorias

Ou seja: não gostei nem desgostei do livro, mas o conteúdo foi interessante o bastante pra ter valido a leitura. se eu recomendo? sim, ué. por que não? Se você leu até aqui e se interessou, vai em frente.

-----Agora comentário com spoiler

O livro faz o trope Bury Your Gays. Por um lado, não tinha pra onde fugir porque todo mundo é de minoria na história. Além disso, essa é uma realidade que questiona e discute a violência sofrida pelas minorias. Acho também que é diferente de pegar uma história tipo Supergirl onde você vê que os autores não entendem, que eles não tratam do mesmo jeito e privilegiam casais f/m, onde você sempre sente a barreira ali da lente hétero impedindo de acontecer. Foi muito bom ler isso (bom não é a melhor palavra, mas ok), porque me deu referência de um tipo de história que faz o trope de uma maneira interessante, sem ser só recurso dramático e você vê que apesar disso, o autor tá buscando casais positivos etc. Por outro lado, ainda é o trope e não dá pra ignorar que praticamente toda história alguém morre, e o livro contribui pra manter o padrão. E, de quebra, a morte se encaixa perfeitamente na forma como o trope normalmente acontece. 

Agora um comentário que pode ser merda, mas que tá aqui no fundo da minha cabeça. Esse personagem que morre acho que era loiro e tinha cachinhos??? (nessas horas a gente queria um ebook pra dar ctrl+f) (se não for, já ignora isso) E eu tive a impressão de que o livro associa branco loiro olhos claros com cachinhos + anjinho + bonzinho, pra reforçar o lado bom do personagem. E se for isso mesmo... só... não.

E agora um comentário pessoal, que é: PRA QUE A GABI TINHA QUE MORRER? O LIVRO JÁ TAVA ACABANDO, NÃO CUSTAVA NADA DEIXAR A MENINA VIVA. POR QUE TEM QUE FAZER ISSO PRA QUE



E é isso. Obrigada à Seguinte e ao Eric Novello por me darem a chance de ler esse livro. :)





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2 comentários

  1. Tá e depois dessa análise imensa, você gostou ou não do livro? Vale à pena? Porque você só ficou no "sei lá, entende" e "sei lá, sabe" e não dá o veredito.

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    1. "No fim, não sabia se eu tinha gostado ou não, decidi que não importa. Sei lá, tem umas histórias que causam isso. Continua sendo algo que eu queria ler? Não. Foi algo que no fim eu gostei de ler? Sim. Tô feliz que eu li."

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