CCAnálise Dana Martins

10 pontos que influenciam na análise de representatividade

11.4.17Dana Martins


Um texto em homenagem a quem tá cansado daquelas histórias de sempre e quer empoderar minorias. Como saber se as histórias são positivas? Com o tempo eu fui percebendo que existem fatores diferentes que influenciam a representatividade. Não basta, "ah, é um personagem legal" ou "EXISTE UM PERSONAGEM DE MINORIA AQUI, YEEY, TÁ ÓTIMO!!". É importante analisar de acordo com perspectivas diferentes, aqui estão 10 delas. 


PRA QUEM É A HISTÓRIA?


  • 1. Qual personagem a história favorece

Os acontecimentos na história estão valorizando que personagem? Servem de lição pra que personagem? Tudo é feito pra alguém, normalmente esse alguém é um homem cis het branco. Tropes tóxicos famosos como "Manasgt" e "Mulheres na Geladeira" são dois resultados disso - uma mulher morre, mas a única relevância disso pra história é como afeta o protagonista [homem]. Isso normalmente não deveria ser problema, porque histórias são baseadas em protagonistas mesmo, o problema é quando a gente tem só um tipo de pessoa dominando o protagonismo, então os problemas e a importância de todas outras pessoas é reduzida.

Um exemplo de "quem a história favorece" é de um filme recente, onde a protagonista vaza nudes da amiga sem autorização - a história literalmente pega um caso sério (nudes sendo vazadas, garotas sofrendo slutshame, que tem impacto drástico na vítima), mas conta isso da perspectiva de quem vazou, centrando a história nos sentimentos dela. O que não é de todo mal, mas é uma forma de roubar protagonismo. O objetivo da história acaba sendo dizer que ela não é a garota má por fazer isso. Mas e as garotas sofrendo com o que ela fez?? 

E a pior parte é que, principalmente no caso de homens, é que mesmo quando esses personagens não são protagonistas, as histórias acabam sendo focadas neles e feitas pra "entender o lado" deles. Ex: Mon-El em Supergirl. 

Ou seja, é importante analisar essa perspectiva porque até mesmo quando a mulher é protagonista, histórias ficam presas em narrativas que favorecem homens. O mesmo serve pra rep racial e LGBT+. Ex: One Day At A Time quando mostra a mãe tendo que lidar com a filha sendo lésbica. Eles pegam uma questão da filha, mas mostram isso da perspectiva da mãe e pra favorecer a mãe. A história é contada pra ela não se sentir mal por ser homofóbica. É uma perspectiva importante, mas o problema é que na maioria das vezes é a única perspectiva. No caso dessa série, eles ainda contrabalanceiam com trechos favorecem a filha, então acaba não sendo tão ruim.

O ponto é que a história favorecer alguém não é necessariamente ruim, porque sempre favorece alguém. Mas tem que tomar cuidado pra não roubar protagonismo de minorias em histórias sobre elas E não cair no ciclo vicioso de fazer tudo pra agradar o personagem homem.


  • 2. Qual público a história favorece


Da mesma maneira que isso acontece em um nível de personagem, isso acontece em nível de público. As histórias são escritas pensando em alguém - e, adivinhe só, é também o homem!

*SPOILER DA S4 DE ORANGE IS THE NEW BLACK NO PARÁGRAFO ABAIXO*

Mas pra dar um exemplo recente que não envolve machismo: Orange Is The New Black. Não é uma história contada para homens, mas é uma história contada para mulheres brancas privilegiadas. Esse é o público com quem eles falam. As lições deles são voltadas pra esses públicos. Eu já escrevi sobre isso aqui. Mas por exemplo, na última temporada eles falaram sobre a brutalidade da polícia - em uma história que envolvia a morte de uma personagem lésbica negra, a Poussey. Toda essa "lição" e história que eles mostraram ali, não é pra pessoas negras. Eles não precisam dessa lição. Eles já sabem disso. O que Orange Is The New Black fez foi literalmente se apropriar da história de pessoas negras no mundo real pra dar uma lição emocionante pra gente branca. Não é uma história que empodera e celebra pessoas negras, não é pras pessoas negras. (aliás, na mesma temporada eles ainda desenvolvem a inocência do policial que a matou, ou seja, mais uma história centrada no personagem homem)

Só pra constar, isso de "escrever pensando em alguém" não precisa ser consciente. Mas por exemplo, se eu estou escrevendo uma história pra explicar o que é ser assexual - eu não tô escrevendo pra alguém que é assexual e sabe o que é, eu tô escrevendo pra alguém que não sabe. Quando eu escrevo uma história pra "provar que mulher pode ir pra guerra", eu não tô escrevendo pra mulheres que vão pra guerra, mas pra o pessoal que pensa que ela não vai.

Novamente, não é necessariamente ruim, mas se torna quando as minorias não tem histórias e até nas próprias histórias são só parte de uma lição pra gente privilegiada. A minoria não é protagonista nem da própria história!

ps: nada disso é 8 ou 80. Ninguém faz ESSA HISTÓRIA É PRA HOMEM!!!! normalmente quando incluem representatividade, o objetivo é mesmo contar a história pras minorias, dar algo bom, e as minorias até se veem e são empoderadas. Porém, não dá pra negar a tendência a favorecer certos grupos e o resultado que é as minorias nunca terem o mesmo privilégio de ser favorecida. Inclusive, quando minoria é favorecida da mesma forma é considerado "forçado", "tendencioso", "fanservice".


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PERSONAGEM NA HISTÓRIA

Aí além de pra quem a história tá sendo contada e qual personagem tá sendo favorecido, tem as formas que o personagem aparece na história.


  • 3. Esse é um personagem legal?

Nessa perspectiva, é só se é um personagem legal que a gente gosta mesmo. Sabe aquele personagem que tu olha e diz "foda"?? Esse é o mais básico, normalmente todo mundo acerta quando tenta colocar minoria. Faz a menina misteriosa, o cara legal, a pessoa com umas tiradas espertas. Qualquer coisa. Essa perspectiva é só se a minoria é um personagem legal. 


  • 4. Esse personagem age/faz a trama andar?

Agora, quando você começa a aprofundar, às vezes você vê que esse personagem legal não faz quase nada. Isso é bem explicado pela "Síndrome Trinity". Às vezes eles tiram a mulher de jogo na última hora de propósito (levou uma porrada, desmaiou, ficou presa num buraco, foi dormir, sei lá), mas muitas vezes nem isso. É só um constante sentimento de impotência - a mulher pode ser "legal," mas ela nunca realiza as coisas pra valer. Isso sempre fica a cargo do homem.

Ex: É um pouco o que sofre a Jyn Erso em Rogue One - ela até escala as coisas, faz uns discursos, mas na hora H da ação, o Cassian sempre aparece.

ps: tô falando de mulher mas serve qualquer minoria


  • 5. Relevância do personagem na história

O grau do personagem na história também conta - ele é o secundário? Ele é o protagonista?

Tem algo muito engraçado em discussão de representatividade que é: nunca colocam a minoria como protagonista. Aí depois dizem "não dá pra desenvolver a história dele, porque ele não é protagonista."



Foi literalmente você que não colocou ele como protagonista??? Você pode fazer ele ser protagonista!! Ou fazer o protagonista ser de minoria!!!

Parece óbvio, mas ainda preciso dizer: personagem de fundo NÃO TEM O MESMO GRAU que personagem protagonista. Viúva Negra é ótima, mas ela nunca, nunca tá no mesmo nível dos Vingadores. Dizer que tá ótimo porque tem uma mulher ali no fundo no meio de 50 homens não faz nem sentido. A Viúva Negra pode ser foda (aí personagem legal!) e ajudar a mover a na trama (Capitão América: Soldado Invernal!!), mas não muda o fato de que ela tá ganhando esmola no filme dos outros.

Colocar a minoria no fundo não resolve todos problemas de representatividade, principalmente porque na primeira oportunidade vão usar a desculpa de "não é protagonista" pra justificar não fazer uma história melhor.


  • 6. Desenvolvimento na história

Qual é a história do personagem? Qual é o arco dele? Ele tem uma jornada interessante? Ele tem algo intrigante, que te faria querer ler e escrever fanfics sobre ele? Nem todo personagem precisa dar vontade de escrever fanfic, obviamente, mas quanto mais ele tem características próprias e uma jornada ao longo da história que tenha conteúdo, melhor é. 



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COMPARAÇÃO



  • 7. Tratamento em relação a outras obras da época 

E representatividade não existe no vácuo. Uma representatividade ruim normalmente é ruim porque vira um estereótipo, porque vira a única história daquele grupo. A mulher é sempre impotente. A lésbica sempre morre. A pessoa bissexual é sempre confusa/fase, não usa a palavra "bissexual". A mulher negra é durona independente que não tem relacionamento amoroso. E por aí vai. Naquela história pode ser a primeira vez que aquilo aparece, mas não deixa de ser ruim porque no contexto geral tá repetindo a mesma coisa das outras.

Ou seja: mostrar uma mulher sendo salva pelo príncipe não é ruim, mas passa a ser quando tá QUASE TODO MUNDO fazendo isso. 


  • 8. Tratamento em relação a outros dentro da história

Uma forma de "medir" a representatividade é ver como o autor organiza as coisas no universo da história. Às vezes falam "ah, olha que mulherão da porra!" e aí quando você olha o resto da história, percebe que ela é a única mulher. Ou você vê que tem um casal de mesmo gênero super-fofinho, só que recebe 5 minutos de atenção e a história passa 20 desenvolvendo casais f/m. Ou enquanto um casal de uma mulher branca com um cara negro leva uma temporada inteira pra desenvolver, entre duas pessoas brancas já acontece de primeira e parece normal. 

Ou, algo que acontece muito, coloca um (01) casal de mesmo gênero enquanto a história tem 12091209 casais f/m, desde o casalzinho principal, até os pais de fulano mencionados numa foto ou que passam andando no fundo de mãos dadas. Em que mundo isso é ser tratado igual?

fonte


Através da comparação é fácil notar os problemas, porque a gente tem o costume de favorecer os grupos privilegiados sem dar conta, isso já foi internalizado na gente. Então a gente faz uma representatividade digna pra esses grupos sem pensar muito. Enquanto a gente reduz minorias por causas das nossas barreiras mentais.

  • 9. Peso da obra no mundo real

Uma das questões de representatividade é que ela transforma cultura popular, transforma o nosso pensamento, atinge públicos diversificados. Todo ano, cada época, cada geração; existem histórias que todo mundo conhece. São histórias relevantes. Enquanto a gente não tiver histórias relevantes que tenham diversidade, as minorias vão continuar marginalizadas.

Então, a representatividade estar acontecendo no filmão principal da trilogia de Star Wars tem um impacto completamente diferente de estar acontecendo na webcomic Tinob e Tizeu: As Aventuras Espaciais.

Os dois são importantes, mas não dá pra limitar minorias a aparecerem apenas em obras marginalizadas.

É por isso que existe uma demanda para essas franquias principais terem representatividade, em vez de só sair criando outras coisas. Mal ou bem, essas são histórias das quais a gente não escapa, são histórias favorecidas na nossa sociedade - e minorias deviam fazer parte delas também. 


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  • 10. Como a própria pessoa representada se sente

Isso não pode ser deixado de fora. Não adianta os 9 pontos acima serem perfeitos, se na hora H a pessoa representada não se interessa pelo personagem. 

Representatividade é ser ver, é se reconhecer, é ficar mais vivo e empoderado. É ser validado através de uma obra de ficção. Não é um ato consciente. Não é algo que você controla. Se você segue todos os pontos mas as pessoas não tão se vendo ali - epa, então tem um problema. Veja bem: a discussão da representatividade boa nunca pode passar acima da pessoa que vai ser representada. Se por todos os motivos lógico parece algo bom, mas a pessoa que tá sendo representada fala "não, não é" - essa é a decisão final. (é claro que não vamos pegar 1 pessoa pra falar por um grupo inteiro, vamos ser razoáveis né)


Enfim, se você analisar por todos esses ângulos e der certo, chances são de que a representatividade é boa:

1. A narrativa tá favorecendo o personagem [de minoria/representado]?
2. Tá favorecendo o público minoritário sendo representado (tá contando uma história pra ele)?
3. O personagem é legal o bastante, daqueles que tu quer até uma camisa?
4. Ele (sozinho) faz coisas práticas na história que fazem a história andar?
5. Ele é um protagonista?
6. Ele tem um arco próprio, passa por jornada própria ao longo da história?
7. Ele é tratado igual aos outros na história, principalmente pessoas de grupos privilegiados?
8. Ele repete padrões (/tropes) que outras histórias repetem, ou é uma nova abordagem?
9. A história tem peso no mundo real?
10. A pessoa sendo representada tá gostando?

obs 1: não se limita a personagem. pode ser a "coisa" apresentada. Ex: relacionamento abusivo, sexualidade. 

obs 2: nada é preto ou branco, cada história vai alcançar isso em níveis diferentes. O número 4, por exemplo, às vezes o personagem pode fazer X pra história andar, mas nas horas principais (5-relevância) fica de fora, ou na maioria das vezes é impotente (7- repetição dentro da história criando um padrão). 

Como escritor, algumas coisas estão fora do controle - tipo ser uma história de peso no mundo real, a não ser que você seja a Disney ou a JK Rowling. Mas dá pra prestar atenção em outros aspectos.

Como pessoa comum que acompanha histórias, você pode usar esses ângulos pra refletir como histórias podem melhorar.






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1 comentários

  1. Muito legal esse post! Me fez pensar em algumas coisas.

    Sou 100% a favor de representar minorias e realidades que não vemos com frequência, mas quando chega na minha hora de escrever... Eu fico meio desconfortável e num dilema que vc mesma entrou tempos atrás, me lembro de um post sobre isso: estar roubando espaço de fala. Colocar um coadjuvante numa minoria é mais fácil, mas, quando o caso é o protagonista, ainda mais se for em 1ª pessoa, é mais complicado. Mas sei que não é impossível. Existem coisas que só uma pessoa numa minoria saberia descrever sobre a própria situação, mas, embora não fique tão profundo, sempre dá para explorar os aspectos comuns a todos os seres humanos.

    Uma coisa que eu faço com as minhas histórias para evitar esses dilemas e fugir um pouco dos tropes negativos é pensar nos personagens sem raça, orientação sexual, gênero etc, nada disso, eles são apenas pessoas. Eu imagino boa parte da história com eles assim, nem nome dou. Depois eu vou numa lista que criei, SORTEIO as características e ajusto minimamente a história para se adequar quando necessário. Eu acabo não criando histórias sobre SER minoria (não me acho capaz???), mas fico com um elenco de personagens mais diverso.

    Acho que eu fico em cima do muro. Me importo um pouco, mas não o suficiente.

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