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Discussão: Jogador Número 1 é distopia?

10.5.12ConversaCult


Eu conheci "Jogador Nº 1" em uma resenha falando que era distópico. A impressão que eu tive é de que o livro poderia ser uma mistura de videogame, futuro e tendência à ficção cientifíca. Essa ideia inicial, o preço baixo e a possibilidade de ser distopia formaram uma combinação mais do que o suficiente para me fazer ler. Sabe como é, 3 é um número mágico...

Mas enquanto eu lia, uma voz lá no fundo ficava perguntando "isso é distopia...?". E, para completar, um amigo veio me perguntar se o livro era distópico, o que eu não consegui responder de cara. Então, decidi pesquisar um pouco e pensar sobre o assunto, o que me levou a caminhos interessantes e que eu quis dividir com vocês.

Atenção: Não se preocupe com spoilers e tanto faz se você leu ou não o livro. Esse post é mais uma discussão sobre gêneros e características. Se você gosta de ler, é totalmente indicado.

O que me chamou atenção de cara no livro é que, mesmo que o personagem narrasse toda a pobreza em que vivia a população e todo o caos causado pelo fim das principais fontes energéticas, não falava de nenhuma forma dominante de poder opressivo. Pelo contrário, o livro mostra o contrário, com um governo totalmente ausente. Você ainda pode dizer que essa dominação poderia ocorrer por parte das empresas, mas mesmo essas não aparecem (calma que eu vou falar da IOI!). Wade, o personagem principal, vive praticamente largado e em contato com o OASIS*, realidade virtual praticamente utópica, justamente porque não há nenhuma empresa dominando "opressivamente". 
*Se você não leu o livro: OASIS é uma espécie de mundo virtual em que você pode entrar como por causa das tecnologias, como se você entrasse dentro da internet ou de um jogo de videogame. 


Uma das características marcantes da distopia é justamente uma forma de controle total que acaba limitando a liberdade das pessoas e isso nós mal vemos. Pelo menos, não como o centro do livro. 

Mais tarde, quando a IOI entra em jogo, nós podemos ver uma distopia no horizonte e os personagens passam a lutar contra a ameaça dessa distopia. Ainda assim, não estamos lidando com uma distopia propriamente dita. O que acontece no livro, por acaso, é muito parecido com o que aconteceu naquele caso do SOPA* aqui. Queriam limitar a internet (e ainda estão fazendo isso, só para lembrar) e todo mundo decidiu "lutar" contra. Agora, nós podemos realmente dizer que nosso mundo é distópico ou que lutamos contra uma distopia?
*Caso se pergunte: o livro foi lançado em agosto de 2011, muito antes de acontecer o que o autor mostraria que poderia acontecer caso surgisse a ameaça de cortarem os direitos da internet (o caso do SOPA). 

"Mais ou menos" é a melhor resposta. De qualquer forma, é mais um modo de tropeçar na hora de afirmar que o livro é distópico. 

Bem, ainda dá para falar sobre o fato do livro ser a nossa realidade ao extremo. Eu já até comentei aqui no CC que uma das características da distopia (e utopia) é pegar o nosso mundo e "exagerar", como se fosse uma caricatura da nossa realidade e, muitas vezes, fazer uma crítica. "Jogador Nº 1" é exatamente assim. Foi surpreendente como o autor conseguiu transmitir o que podemos fazer na internet para um plano "real". 

Outro ponto que o livro tem em comum com as distopias é a pobreza. O mundo distópico é a alternativa ruim e ninguém pode negar as péssimas condições em que as pessoas estão vivendo no mundo criado por Ernest Cline. 

Por enquanto, está tudo quase bem e até poderíamos marcá-lo na nossa coleção de "distópicos". Porém, enquanto eu lia "Jogador Nº 1" me lembrava muito a um outro, "Neuromancer". Talvez você não reconheça o nome, mas com certeza conhece Matrix, que foi inspirado nesse livro. Ele é um clássico "alternativo" e representante do... Cyberpunk. Daí, foi só um passo para fazer a ligação entre Jogador Número 1 e esse gênero.

Vou roubar a definição para ganhar tempo:

Cyberpunk é um subgênero da ficção científica, conhecido por seu enfoque de "Alta tecnologia e baixo nível de vida" ("High tech, Low life") e toma seu nome da combinação de cibernética e punk. Mescla ciência avançada, como as tecnologias de informação e a cibernética junto com algum grau de desintegração ou mudança radical na ordem social. 
De acordo com Lawrence Person: "Os personagens do cyberpunk clássico são seres marginalizados, distanciados, solitários, que vivem à margem da sociedade, geralmente em futuros distópicos onde a vida diária é impactada pela rápida mudança tecnológica, uma atmosfera de informação computadorizada ambígua e a modificação invasiva do corpo humano."
Segundo William Gibson, em seu livro Neuromancer, o indivíduo ciberpunk é uma espécie de "pichador virtual" que se utiliza de seu conhecimento acima da média dos usuários para realizar protestos contra a sistemática vigente das grandes corporações, sob a forma de vandalismo com cunho depreciativo, a fim de infligir-lhes prejuízos sem, contudo, auferir qualquer ganho pessoal com tais atos.

Pegue o que você leu aí, grude uma linha direta com a nossa realidade, agrave problemas sociais e ambientais de hoje em dia e... "Jogador Número 1". 

Só por curiosidade: na verdade, o próprio cyberpunk é uma espécie de distopia (ignorando o lado político-social) da ficção científica. Sabe aquelas histórias futuristas em que as tecnologias transformam o mundo, tudo fica interessante e legal? Aquelas em que ficamos maravilhados com as novas possibilidades enquanto passeamos na nossa nave especial no meio de um trânsito aéreo surpreendido pelas inúmeras luzes que compõe esse cenário futurista? Essas seriam a versão utópica em que as tecnologias transformam o mundo em um lugar ideal. Já o cyberpunk, é o contrário disso, mostrando todos os problemas que as tecnologias nos causaram (Em Jogador: fim das fontes de energia, poluição, pessoas que vivem presas à realidade virtual...). 

Só para terminar, "Jogador Número 1" é um livro que trabalha muito mais a influência das máquinas na vida das pessoas, que é mais o foco do cyberpunk, do que a questão de um poder dominante.


Afinal, Jogador Nº 1 é ou não é distópico? Jogador Nº 1 é uma distopia tanto quanto ele é um romance. Os elementos estão lá, mas no final do dia quem sai ganhando é o cyberpunk. 

E que diferença faz chamar de cyberpunk, distópico ou até pós-apocalíptico (que também está lá)? A diferença é que com 984934834 livros na prateleira às vezes é bom ter ideia do que você vai ler. Imagina se você pega "Jogador Nº 1" procurando algo como "Jogos Vorazes"? Além disso, evita que as pessoas acabem deixando de gostar do livro porque vão buscando outra coisa, como acontece em "Sangue Quente" que as pessoas acham que é uma história de zumbis, ou um romance, e ao não encontrar isso, ficam decepcionados e perdem o potencial da história.

Se você não se convenceu até agora, saiba que o termo "cyberpunk" surgiu nos anos 80. Quer prova maior do que isso? 
*Se você não leu o livro: Jogador Número 1 é um passeio na cultura pop dos anos 80. Se estivéssemos nessa década, seria de tudo aquilo que o CC falaria. :D

Veja também:
>>>Discussão: Distópico vs. Apocalíptico

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2 comentários

  1. Adorei a resenha!! Super interessante. Agora fiquei curiosa para ler esse livro.

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  2. Nossa, ótimo post, Dana. Então, concluindo: Não é a distopia que estamos procurando ( onde temos um sistema político e social falsamente utópico com um governo totalitário ), mas pode se encaixar na categoria por ser cyberpunk, que também é um tipo de distopia, apesar de cyberpunk antes de tudo. Acho que consegui compreender ahha Eu não sabia que o Neuromancer tinha inspirado Matrix. Agora vou ter que ler ahhaaaha A lista só aumenta ahaha Mas pra melhor, creio eu...


    Beijos,

    Victor

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