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[Resenha] Mulheres na Luta, de Marta Breen e Jenny Jordah

19.4.19Dana Martins


Sabe o que eu gosto sobre quadrinhos? É que eles tem o potencial de explicar grandes conceitos de uma forma simples, que fica na cabeça. Foi isso que me atraiu para Mulheres na Luta. O livro prometia contar a história do movimento feminista em quadrinhos, e eu fiquei curiosa. 

Acho que, de modo geral, o livro cumpre seu papel. Em vez de uma história concisa, ele traz o que parecem ser vários diferentes segmentos envolvendo a história do feminismo no mundo, ressaltando mulheres emblemáticas que lutaram por direitos, e ilustrando sua luta. Tudo de uma forma bem despojada, com uma arte bem estilosa, mostrando que discutir movimentos sociais não precisa envolver um livro tijolão de capa cinza cansativo. Às vezes parecia até um daqueles momentos que um amigo legal tenta te explicar algo de história com as próprias palavras. "Aí, cara, tu sabia que nos EUA teve essa mulher chamada Harriet Tubman, ela foi uma pessoa escravizada que conseguiu fugir e depois não só começou a contrabandear outras pessoas pra liberdade, como participou de lutas por direitos?" (palavras minhas, no livro é mais desenvolvido)

Algumas das mulheres que o livro cita: Harriet Tubman, Malala, Marsha P. Johnson, Safo, Margaret Sanger, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft. 

O livro cobre "150 anos em busca de liberdade, igualdade e sororidade." Ressaltando pensadoras que apontavam o machismo no iluminismo, e mulheres que lutavam pela abolição da escravatura. Passa pelas três ondas do feminismo e tenta mostrar suas demandas, assim como mostra as condições de injustiça que levaram essas mulheres a lutar. Tem uma parte falando do movimento LGBT+. E, a minha parte preferida, no final tem um pósfacio (tipo um texto anexo comentando) escrito por Bárbara Castro que é um resumo de como essa luta aconteceu especificamente no Brasil através do anos e as mulheres que foram importantes para isso.

No geral, Mulheres na Luta é um bom caminho de entrada para quem quer começar a entender a história do feminismo ou simplesmente reconhecer as grandes mulheres ao redor do mundo que contribuíram para chegar até onde estamos hoje. Essa memória específica é muito apagada, e pelo menos eu fui uma das pessoas que cresceu nessa ilusão de que não tinha grandes mulheres cientististas, filósofas, etc. Esse livro é uma opção ótima pra ser discutida em sala de aula, com todos os alunos lendo e então aqueles trabalhos em grupo com cada um cobrindo uma parte específica da história mais profundamente. Ou até pais com filhos. Pra mim, que não tenho filho nem tô dando aula pra ninguém, eu gosto porque é uma espécie de dicionário rápido, um guia. Reforçou alguns conhecimentos na minha cabeça, e agora eu tenho uma referência para voltar a estudar feminismo mais profundamente. 

(Em outros carnavais, daria até pra fazer uma série de posts aprofundando a História do feminismo a partir dos momentos cobertos no livro...) 

E digo mais, eu li o livro todo de uma vez, a história é destilada simples assim. E a primeira coisa que eu fiz depois de terminar foi colocar na bolsa pra dar para a minha madrasta, que tem se interessado mais por entender história. É muito mais fácil ela ler isso do que um blocão de texto. Acho que uma das coisas que a gente precisa, quando se discute qualquer tipo de conhecimento, é pontos de acesso com facilidade, e esse livro é isso. É bom até pra deixar rolando em casa ou na sala de espera de um consultório porque já se aprende muito de folhear algumas páginas.

PORÉM...

Apesar de tudo, eu também indico a leitura através de uma lente crítica. O livro literalmente abre com "No século XIX, mulheres e homens viviam de maneira muito diferente." mostrando um casal branco com trajes de época  e o tempo todo eu me perguntava: que homens e mulheres? ONDE? Porque essas afirmações abrangentes dão a entender que é assim no mundo todo e pra toda mulher, enquanto não é o caso. Esse é um livro que até faz esforços pra incluir, mas é muito bom só no que diz respeito a perspectiva da mulher branca/europeia hétero. Pra o resto, deixa muito a desejar.

Por exemplo, quando fala sobre conquistar os direitos do voto nos Estados Unidos e até cita Harriet Trubman na luta, comemora a data de 1920 como data do voto feminino. Mas mulheres negras, asiáticas e indígenas não tiveram o mesmo direito por décadas, só lá em 1965 foi feito uma lei contra a discriminação racial no direito ao voto. Lei que mesmo depois disso passou por ataques e até hoje nos EUA eles continuam lutando com medidas de restrição ao voto, que atingem especificamente as minorias raciais. O mesmo aconteceu no Brasil, mas isso é mencionado no texto final. 

Eu não aguento essa versão da história omissa da história do voto, porque toda vez que eu vejo aquele bando de mulher branca sendo tratada como heroínas, eu vejo a ausência não só das mulheres que contribuíram para essa luta, como não tiveram as mesmas conquistas. E isso nos leva a um problema maior, que eu acredito que seja uma das lutas necessárias do feminismo atual, que é a necessidade de reconhecer todas as mulheres e suas lutas diferentes. Além disso, a gente precisa reconhecer esses problemas em vez de tratar como se fosse uma sujeira que precisa ser varrida pra baixo do tapete. Sério, que problema teria fazer um segmento nesse livro destinado a reconhecer as diferenças realidades de voto? 

E existe algo de pernicioso quando o livro faz questão de falar das mulheres brancas lutando contra o abolicionismo e até como o livro "A Cabana do Pai Tomás," escrito pela mulher branca Harriet Beecher Stowe, foi importante pra acabar com a escravatura, mas falha em ter um parágrafo que seja falando "infelizmente, o voto veio só pras mulheres brancas, as outras tiveram que continuar lutando, mas não vou nem mencionar até quando elas lutaram porque aparentemente não acho relevante falar desse evento em um livro sobre mulher conquistando direito de voto." Existe essa recusa em reconhecer o racismo como se fosse um bicho cabeludo, ao mesmo tempo que faz o esforço superficial de incluir, e isso só gera mais racismo. 

Pra deixar claro, não é que as autoras não queiram incluir, mas pensar "poxa, realmente, mulheres negras precisam de direitos também! todas as mulheres unidas yaaaaay" não é o mesmo que ter autocrítica sobre o próprio racismo e não perpetuar mentalidades colonizadoras. Esse livro é até mais inclusivo que a média, mas ainda é importante ler tendo em mente que é centrado na mulher branca americana/europeia. 

Comentário a parte, eu sempre penso nisso desde que vi um filme qualquer aí recente sobre a história da luta pelo voto feminino protagonizado por um elenco de mulher branca, e eu penso que o melhor filme sobre isso seria um que intercalasse diferentes décadas e mulheres lutando através do tempo. 

Além dessa questão do voto, tem outras coisas, como a história de Táhrih, a mártir iraniana que, segundo o livro, é "a primeira mártir de que se tem notícia na história da luta feminista." Acho interessante que a primeira mártir aparece na metade do livro. E a história dela é super curta, marcada por violência, termina com um desenho em página toda dela sendo estrangulada pelo véu e isolada do resto. O que aconteceu depois? Qual foi o impacto dela? Por que precisa mostrar abertamente a violência assim?  

E tem outro momento, na parte da Malala, que fala sobre as perdas do direito no Afeganistão que mostra as mulheres andando de saia e cabelos aos vento na rua em 1965, depois usando a burca (corpo todo coberto) em 2015. Não sei explicar isso a não ser dizendo que isso é muito preconceituoso, racista e colonizador. Não cabe a gente usar nossos parâmetros de liberdade pra julgar a cultura dos outros. E o caso dessas roupas mais cobertas em si, já é uma questão que vem sendo discutida em que as próprias mulheres falam da opressão que elas sofrem no ocidente por se vestirem assim. Não é pouca coisa, ainda mais depois da perseguição que aconteceu nos Estados Unidos nos anos recentes. O livro pinta essa imagem exótica e violenta do Oriente Médio, mas é nos Estados Unidos e Europa que essas mulheres são até assassinadas na rua por escolherem se vestir assim. Só escrevendo esse texto já fui parar em uma notícia sobre Tribunal Europeu apoiar uma lei francesa que proíbe o véu islâmico em público, o exato tipo de medida que historicamente faz parte do processo de colonização e limpeza cultural. É aqui que o feminismo tem que entrar, lutando pra mulher ter o direito de se vestir como quiser e poder praticar a própria religião em paz, em vez de criar quadrinho com imagem simbólica que contribui pra marginalização de outras mulheres. 

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/07/tribunal-europeu-apoia-lei-francesa-que-proibe-veu-islamico-em-publico.html

Um outro ponto que me chamou atenção no livro é como ele pinta uma ideia eterna de "sempre foi assim, a mulher nunca teve direito e tinha que ficar em casa lavando louça e cuidando dos filhos," ignorando as diversas culturas onde isso é diferente, como esse ideal é um reflexo da colonização, como no passado tiveram vários povos que a organização foi diferente, como mesmo quando era assim tinha mulheres que desafiavam o comum e como até esse é um ideal que "sempre foi assim" apenas quando se trata de mulher branca, porque das mulheres negras esperava-se que elas tivessem lá fora trabalhando. Esse mito do "sempre foi assim" é um veneno cultural, porque cria uma sensação de impotência. Afinal, se em milhares de anos mulher só servia pra botar filho no mundo, por que as coisas mudariam? Talvez ser submissa e servir ao homem seja uma parte natural da mulher! 

Eu acho mesmo que a gente precisa de livros como esse que criam memória, que incluem as mulheres na história e celebram nossos feitos, mas a gente precisa também consertar essa narrativa dominante de que "foi sempre assim." 

Pra fechar, mais uma coisa gritante pra mim foi a parte LGBT+. Primeiro, que resume LGBT+ a lésbicas e gays, só depois lembrando de mencionar pessoas trans, mas tudo superficial. Pessoas bissexuais, assexuais, pan, etc, foram esquecidas em churrasco. Fala de Safo pra explicar a origem da palavra lésbica, mas conquista a proeza de fazer a Safo parecer hétero. Não obstante, quando fala da revolta de Stonewall (evento nos EUA que foi estopim pra conquista de direitos LGBT+), tira o protagonismo das mulheres trans pra dar aos homens gays e menciona a Marsha P. Johnson como um adendo falando "mulheres trans também participavam da rebelião." Cara, era para a Marsha P. Johnson ter recebido o mesmo destaque de todas as outras mulheres que receberam segmentos pra si nesse livro, ela que liderou a primeira revolta. Por que o livro não foi escrito assim? 

O livro ainda fecha esse segmento escrevendo "Muitos homossexuais e pessoas trans continuam sendo vítimas de crimes de ódio," porque agora a sigla é HT, aparentemente. Se pareço puta é porque estou. Pelo menos o desenho da bandeira pendurada falando do atentado em Orlando é bonito. Ao mesmo tempo, é interessante como eles representam esse ato de violência com uma imagem de céu escuro com a bandeira colorida solitária na frente, enquanto no caso da Táhrih eles mostraram explicitamente. 

Enfim, essas questões todas mostram as limitações do livro. Isso não descarta nada do que eu disse lá em cima, e a história continua sendo uma boa introdução - por falta de melhores. E o posfácio da Bárbara Castro resume perfeitamente como eu me sinto:

"O livro Mulheres na luta é justamente um esforço de produzir memória. Gostaria que entendessem esse livro e este posfácio como um convite a vocês, leitoras e leitores, para mergulhar ainda mais fundo, para buscar conhecer melhor cada uma das pessoas e episódios aqui retratados, e para recuperar outras histórias ainda ocultas e esquecidas das lutas das mulheres." 


Mulheres na Luta é um livro da Seguinte, escrito por Marta Breen e Jenny Jordahl, com posfácio de Bárbara Castro, traduzido do noruguês por Kristin Lie Garrubo 

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